Atenção Básica à Saúde no SUS: uma herança com testamento
Maria Fátima de Sousa, Ana Valéria Machado Mendonça -Professoras da Universidade de Brasília
A Atenção Básica à Saúde (ABS) no Brasil vem desde o século
passado tentando abrir um raio de sol no céu nublado do Sistema de
Saúde. Nublado porque a acolhida dessa agenda entre governos de
diferentes matrizes ideológicas teima em não deixar seus raios
brilharem. Ainda assim vários são os feixes de luz, traduzidos em
ideias, movimentos, processos e práticas, nos mais heterogêneos,
complexos e singulares territórios municipais.Lá nas 5564 cidades, a ABS
revela outros sentidos na arte de cuidar da saúde de cada pessoa.
Assim, deixa estrada afora suas pérolas como testamento de sua herança,
ainda que entre tormentas políticas e socioculturais que,
historicamente, insistem em dificultar a edificação de um sistema
público de saúde, universal, integral e de qualidade.
A primeira tormenta é a irracional concentração de "tecnologia
de ponta" em grandes centros urbanos em detrimento das pequenas e médias
cidades; a segunda, a acelerada e incontrolável elevação de custo do
atendimento médico, já insuportável inclusive para as economias mais
desenvolvidas, subordinando a prestação da assistência aos interesses
dos produtores de serviços e bens do "complexo industrial
médico-terapêutico"; a terceira, a "fantasia" do poder e prestígio
social das corporações da área da saúde, sobretudo, a médica, por
acharem que controlam os mercados das super subespecialidades. Este
conjunto de problemas provoca a existência de um mercado educacional
cada vez mais privatizado, que abre escolas e oferece vagas sem levar em
conta as reais necessidades de saúde da
população.
A quarta tormenta é o impacto das chamadas doenças do mundo
moderno, entre elas a violência social. Tormentas que, nestes 25 anos da
criação do Sistema Único de Saúde (SUS), 22 anos do Programa de Agentes
Comunitários de Saúde (PACS) e 20 anos da Estratégia Saúde da Família
(ESF), por virtude das forças sociais e sanitárias do povo brasileiro,
cedem lugar para as boas heranças. A maior delas o mundo já aplaudiu. Os
sinos já não tocam mais com tanta frequência e velocidade. Comemoramos a
vida de milhares de crianças que completam seus cinco anos de vida. As
mulheres já revelam aos Agentes Comunitários de Saúde, espalhados pelo
Brasil, seus primeiros sinais de gravidez. Têm suas consultas garantidas
durante o pré-natal. No retorno do parto, lá estão eles desta vez para
ajudar a cuidar dos
dois: mãe e filho(a).
Os homens começam a olhar com outros olhos para as Unidades
Básicas de Saúde. Já veem naquele lugar um canto para monitorar
diariamente sua saúde: acompanhar diabetes, hipertensão e outros
agravos.
As 36 mil equipes da ESF, sobretudo os 300 mil ACS, juntos com
as 23 mil equipes de saúde bucal, não param. Seguem deixando suas
heranças quando articulam as ações nos governos locais, rumo à
integralidade das políticas públicas e ampliam diálogos entre
municípios, sem interferência político- partidário, em busca de
instituir redes de atenção à saúde. Assim, estabelecem novos processos
de comunicação com a autonomia e a liberdade de quem trabalha com
estratégias promotoras da saúde. Assim ocorre quando compreendem a
necessidade de reduzir as desigualdades regionais, lutando pelo aumento
dos
investimentos na atenção básica para, no mínimo, 30% do orçamento
nacional; quando sentem necessidade de fortalecer as relações de vínculo
e corresponsabilidade entre famílias visando a agregar valores aos
processos de informação e comunicação. Esses movimentos são sinais
luminosos de acolhimento, transparência e participação efetiva e afetiva
na atenção e gestão da ABS no SUS. E mais, eles criam o futuro quando
acreditam que é possível mudar a face dos governos no entorno dos
valores da Atenção Básica em Saúde no tocante aos seus sentidos de
justiça, igualdade e solidariedade. Essa é a maior herança. E deve ter
testamento!
Publicado na Revista Ciência e Saúde Coletiva, Vol.19 - RJ
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