quinta-feira, 10 de abril de 2014

ABS no SUS

Atenção Básica à Saúde no SUS: uma herança com testamento

Maria Fátima de Sousa, Ana Valéria Machado Mendonça -Professoras da Universidade de Brasília

A Atenção Básica à Saúde (ABS) no Brasil vem desde o século passado tentando abrir um raio de sol no céu nublado do Sistema de Saúde. Nublado porque a acolhida dessa agenda entre governos de diferentes matrizes ideológicas teima em não deixar seus raios brilharem. Ainda assim vários são os feixes de luz, traduzidos em ideias, movimentos, processos e práticas, nos mais heterogêneos, complexos e singulares territórios municipais.Lá nas 5564 cidades, a ABS revela outros sentidos na arte de cuidar da saúde de cada pessoa. Assim, deixa estrada afora suas pérolas como testamento de sua herança, ainda que entre tormentas políticas e socioculturais que, historicamente, insistem em dificultar a edificação de um sistema público de saúde, universal, integral e de qualidade.

A primeira tormenta é a irracional concentração de "tecnologia de ponta" em grandes centros urbanos em detrimento das pequenas e médias cidades; a segunda, a acelerada e incontrolável elevação de custo do atendimento médico, já insuportável inclusive para as economias mais desenvolvidas, subordinando a prestação da assistência aos interesses dos produtores de serviços e bens do "complexo industrial médico-terapêutico"; a terceira, a "fantasia" do poder e prestígio social das corporações da área da saúde, sobretudo, a médica, por acharem que controlam os mercados das super subespecialidades. Este conjunto de problemas provoca a existência de um mercado educacional cada vez mais privatizado, que abre escolas e oferece vagas sem levar em conta as reais necessidades de saúde da população.

A quarta tormenta é o impacto das chamadas doenças do mundo moderno, entre elas a violência social. Tormentas que, nestes 25 anos da criação do Sistema Único de Saúde (SUS), 22 anos do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) e 20 anos da Estratégia Saúde da Família (ESF), por virtude das forças sociais e sanitárias do povo brasileiro, cedem lugar para as boas heranças. A maior delas o mundo já aplaudiu. Os sinos já não tocam mais com tanta frequência e velocidade. Comemoramos a vida de milhares de crianças que completam seus cinco anos de vida. As mulheres já revelam aos Agentes Comunitários de Saúde, espalhados pelo Brasil, seus primeiros sinais de gravidez. Têm suas consultas garantidas durante o pré-natal. No retorno do parto, lá estão eles desta vez para ajudar a cuidar dos dois: mãe e filho(a).

Os homens começam a olhar com outros olhos para as Unidades Básicas de Saúde. Já veem naquele lugar um canto para monitorar diariamente sua saúde: acompanhar diabetes, hipertensão e outros agravos.

 As 36 mil equipes da ESF, sobretudo os 300 mil ACS, juntos com as 23 mil equipes de saúde bucal, não param. Seguem deixando suas heranças quando articulam as ações nos governos locais, rumo à integralidade das políticas públicas e ampliam diálogos entre municípios, sem interferência político- partidário, em busca de instituir redes de atenção à saúde. Assim, estabelecem novos processos de comunicação com a autonomia e a liberdade de quem trabalha com estratégias promotoras da saúde. Assim ocorre quando compreendem a necessidade de reduzir as desigualdades regionais, lutando pelo aumento dos investimentos na atenção básica para, no mínimo, 30% do orçamento nacional; quando sentem necessidade de fortalecer as relações de vínculo e corresponsabilidade entre famílias visando a agregar valores aos processos de informação e comunicação. Esses movimentos são sinais luminosos de acolhimento, transparência e participação efetiva e afetiva na atenção e gestão da ABS no SUS. E mais, eles criam o futuro quando acreditam que é possível mudar a face dos governos no entorno dos valores da Atenção Básica em Saúde no tocante aos seus sentidos de justiça, igualdade e solidariedade. Essa é a maior herança. E deve ter testamento!

Publicado na Revista Ciência e Saúde Coletiva, Vol.19 - RJ

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