Faltam recursos?
Cátia Guimarães
O Ministério da Saúde reconhece que “os recursos não são suficientes para garantir a sustentabilidade do sistema público de saúde, de forma permanente, amparado nos princípios da universalidade, integralidade e equidade”.
Por isso, diz, “o Ministério defende o debate junto com toda a sociedade para viabilizar novas fontes de financiamento para a saúde”. Gastão Wagner, sanitarista e presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), analisa: “Eu acho que o mais grave, do ponto de vista político, de valores, é que o ajuste vem com a ideia de que a responsabilidade do desequilíbrio fiscal e orçamentário é das políticas sociais, como saúde, educação e aposentadoria. E quando algum governante admite que o SUS pode precisar de mais recursos, fala que isso só [é possível] com uma nova fonte”.
Embora não nomeie, a “nova fonte” defendida pelo governo federal é a retomada da CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira), que existiu entre 1997 e 2007 especificamente para financiar a saúde. Mas, tal como não se pode tratar o ajuste fiscal e os cortes orçamentários como resposta natural à crise, não é consenso que a carência de investimentos na saúde pública se justifique pela falta de recursos.
Primeiro é preciso esclarecer os dados que costumam ser utilizados para tratar do financiamento da saúde. É comum se ler nos jornais que o Brasil investe 8% do PIB em saúde, o que nos colocaria num bom patamar, já que essa é a média de gasto dos países com sistema universal (em que todos, indistintamente, têm direito a qualquer ação de saúde). O que se costuma esquecer de dizer é que, desse total, somando o investimento de União, estados e municípios, apenas 3,9% do PIB vai para a saúde pública; os outros 4,2% referem-se às despesas privadas de saúde que acontecem no país, incluindo gasto com consultas, planos de saúde e medicamentos.
Na mesma Constituição Federal que criou o SUS, definindo saúde como direito de todos e dever do Estado, os recursos desse setor foram vinculados ao orçamento da seguridade social – que inclui também previdência e assistência social.
Aqui, aliás, entra em cena um outro mito, muito alardeado nos jornais especialmente neste momento de ajuste: o de que a previdência brasileira é deficitária e, por isso, é urgente uma reforma que diminua os gastos. Vamos aos números: contabilizadas todas as fontes de receita, o orçamento da seguridade social totalizou R$ 686 bilhões em 2014; somadas, as despesas com saúde, previdência e assistência chegaram a pouco mais de R$ 632 bilhões. O resultado dessa simples conta de subtrair é que toda a seguridade social teve um superávit de R$ 53,89 bilhões. Por que falta dinheiro, então? Porque, desde 1994, uma mudança constitucional que vem sendo constantemente atualizada instituiu o que hoje se chama Desvinculação de Receitas da União (DRU), um mecanismo que permite que o governo federal desvie 20% desse orçamento para outras despesas. Em 2014, isso significou a retirada de mais de R$ 63 bilhões – e, assim, como num passe de mágica, um saldo de mais de R$ 50 bi se transformou num déficit de quase R$ 10 bilhões.
Na Proposta de Emenda Constitucional que fez a última renovação da DRU, em 2011, a justificativa dada pelo governo era de que “a estrutura orçamentária e fiscal brasileira possui elevado volume de despesas obrigatórias, como as relativas a pessoal e a benefícios previdenciários” e que isso “reduz o volume de recursos orçamentários livres que seriam essenciais para implementar projetos governamentais prioritários, e prejudica a poupança para promover a redução da dívida pública”. Portanto, os recursos para saúde, previdência e assistência social existem. O problema é que eles são deslocados para outro lugar – e não por qualquer obrigação legal, mas por uma opção dos governos que, conforme fica claro no texto, elegem outras prioridades de políticas, além do pagamento de uma dívida que, como mostra a matéria de abertura desta série especial, só faz crescer em vez de diminuir. Dados sistematizados pelo economista Áquilas Mendes mostram, por exemplo, que enquanto o investimento em saúde ficou estagnado na média de 1,7% do PIB desde 1995 – tendo atingido o máximo de 1,8% em 2009 e 2012 –, o gasto com os juros da dívida teve grande flutuação, chegando a 9,3% em 2003 e fechando 2014 em 5,6% do PIB. De acordo com ele, desde a sua implantação, a DRU provocou a perda de R$ 704,2 bilhões de recursos originários da seguridade social.
Como parte das medidas consideradas estruturantes do ajuste fiscal, já está tramitando no Congresso a PEC 87/2015, que além de renovar a DRU até 2023, aumenta de 20% para 30% o limite da desvinculação. “Eu defendo que não tem que gastar mais do que tem, só tem que rever o padrão de gasto público. Está-se investindo para os mais ricos, com a justificativa de que isso aceleraria o crescimento econômico, e isso não tem ocorrido”, diz Gastão. E completa: “Esse é um ponto que a gente está perdendo na discussão do ajuste. Fica no horizonte do povo que o ensino público e o SUS não podem receber mais nenhum recurso porque isso seria irresponsabilidade econômica e administrativa”.
Outra forma de ‘desvio’ de recursos do Estado que deveriam financiar a saúde pública acontece por meio da renúncia fiscal, um mecanismo em que o governo diminui ou mesmo abre mão de receber alguns impostos para incentivar um determinado ramo da economia. No caso da saúde, esse artifício tem sido amplamente usado, por exemplo, para fomentar a compra de planos de saúde ou fortalecer hospitais privados (inclusive muitos de luxo, como o Albert Einstein e o Sírio Libanês) contemplados com o selo de ‘filantrópicos’. Somadas todas as formas de desoneração da área da saúde, tanto de pessoa física (por meio do Imposto de Renda) quanto de empresas, R$ 18,3 bilhões deixaram de entrar nos cofres do governo federal em 2012 (últimos dados disponíveis), de acordo com estudos do pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Carlos Ocké-Reis – como se pode ver, só esse valor cobriria todo o corte de orçamento que o Ministério da Saúde sofreu, e ainda sobraria dinheiro.
Quem não acompanhou a luta pela criação de um sistema universal de saúde no Brasil e se preocupa com o ajuste fiscal na saúde de forma mais pragmática talvez ache que a estratégia de se financiar com recursos públicos uma oferta de saúde em instituições privadas pode ser um caminho interessante para dar conta das necessidades da população. Toda a experiência exitosa dos países nos quais o movimento sanitário se inspirou para defender o SUS já seria suficiente para desmistificar essa ideia de que a saúde pode ser comprada como um serviço num mercado privado. Mas nem é preciso ir tão longe: para desanimar os mais esperançosos, basta uma olhada nos resultados da pesquisa de saúde citada na abertura desta matéria. Na época, a manchete dos jornais chamava atenção principalmente para o fato de que 93% dos entrevistados estão “insatisfeitos” com a saúde e que 60% deles avaliam como ruim ou péssima a saúde no Brasil. Um olhar mais rigoroso sobre os dados, no entanto, mostra que esse percentual diminui para 54% quando se trata especificamente do SUS, o que, ao contrário de todo o discurso que elogia o mercado, indica uma insatisfação maior com a saúde privada. Na outra ponta, a pesquisa mostra que apenas 6% dos brasileiros classificam a saúde brasileira como boa ou excelente, um número que dobra (12%) quando a avaliação é especificamente sobre o sistema público.
Não é por acaso que, entre aqueles que lutam pelo fortalecimento do SUS, soa cada vez mais alto o aviso de que ‘Saúde não é mercadoria’.
Cátia Guimarães
O Ministério da Saúde reconhece que “os recursos não são suficientes para garantir a sustentabilidade do sistema público de saúde, de forma permanente, amparado nos princípios da universalidade, integralidade e equidade”.
Por isso, diz, “o Ministério defende o debate junto com toda a sociedade para viabilizar novas fontes de financiamento para a saúde”. Gastão Wagner, sanitarista e presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), analisa: “Eu acho que o mais grave, do ponto de vista político, de valores, é que o ajuste vem com a ideia de que a responsabilidade do desequilíbrio fiscal e orçamentário é das políticas sociais, como saúde, educação e aposentadoria. E quando algum governante admite que o SUS pode precisar de mais recursos, fala que isso só [é possível] com uma nova fonte”.
Embora não nomeie, a “nova fonte” defendida pelo governo federal é a retomada da CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira), que existiu entre 1997 e 2007 especificamente para financiar a saúde. Mas, tal como não se pode tratar o ajuste fiscal e os cortes orçamentários como resposta natural à crise, não é consenso que a carência de investimentos na saúde pública se justifique pela falta de recursos.
Primeiro é preciso esclarecer os dados que costumam ser utilizados para tratar do financiamento da saúde. É comum se ler nos jornais que o Brasil investe 8% do PIB em saúde, o que nos colocaria num bom patamar, já que essa é a média de gasto dos países com sistema universal (em que todos, indistintamente, têm direito a qualquer ação de saúde). O que se costuma esquecer de dizer é que, desse total, somando o investimento de União, estados e municípios, apenas 3,9% do PIB vai para a saúde pública; os outros 4,2% referem-se às despesas privadas de saúde que acontecem no país, incluindo gasto com consultas, planos de saúde e medicamentos.
Na mesma Constituição Federal que criou o SUS, definindo saúde como direito de todos e dever do Estado, os recursos desse setor foram vinculados ao orçamento da seguridade social – que inclui também previdência e assistência social.
Aqui, aliás, entra em cena um outro mito, muito alardeado nos jornais especialmente neste momento de ajuste: o de que a previdência brasileira é deficitária e, por isso, é urgente uma reforma que diminua os gastos. Vamos aos números: contabilizadas todas as fontes de receita, o orçamento da seguridade social totalizou R$ 686 bilhões em 2014; somadas, as despesas com saúde, previdência e assistência chegaram a pouco mais de R$ 632 bilhões. O resultado dessa simples conta de subtrair é que toda a seguridade social teve um superávit de R$ 53,89 bilhões. Por que falta dinheiro, então? Porque, desde 1994, uma mudança constitucional que vem sendo constantemente atualizada instituiu o que hoje se chama Desvinculação de Receitas da União (DRU), um mecanismo que permite que o governo federal desvie 20% desse orçamento para outras despesas. Em 2014, isso significou a retirada de mais de R$ 63 bilhões – e, assim, como num passe de mágica, um saldo de mais de R$ 50 bi se transformou num déficit de quase R$ 10 bilhões.
Na Proposta de Emenda Constitucional que fez a última renovação da DRU, em 2011, a justificativa dada pelo governo era de que “a estrutura orçamentária e fiscal brasileira possui elevado volume de despesas obrigatórias, como as relativas a pessoal e a benefícios previdenciários” e que isso “reduz o volume de recursos orçamentários livres que seriam essenciais para implementar projetos governamentais prioritários, e prejudica a poupança para promover a redução da dívida pública”. Portanto, os recursos para saúde, previdência e assistência social existem. O problema é que eles são deslocados para outro lugar – e não por qualquer obrigação legal, mas por uma opção dos governos que, conforme fica claro no texto, elegem outras prioridades de políticas, além do pagamento de uma dívida que, como mostra a matéria de abertura desta série especial, só faz crescer em vez de diminuir. Dados sistematizados pelo economista Áquilas Mendes mostram, por exemplo, que enquanto o investimento em saúde ficou estagnado na média de 1,7% do PIB desde 1995 – tendo atingido o máximo de 1,8% em 2009 e 2012 –, o gasto com os juros da dívida teve grande flutuação, chegando a 9,3% em 2003 e fechando 2014 em 5,6% do PIB. De acordo com ele, desde a sua implantação, a DRU provocou a perda de R$ 704,2 bilhões de recursos originários da seguridade social.
Como parte das medidas consideradas estruturantes do ajuste fiscal, já está tramitando no Congresso a PEC 87/2015, que além de renovar a DRU até 2023, aumenta de 20% para 30% o limite da desvinculação. “Eu defendo que não tem que gastar mais do que tem, só tem que rever o padrão de gasto público. Está-se investindo para os mais ricos, com a justificativa de que isso aceleraria o crescimento econômico, e isso não tem ocorrido”, diz Gastão. E completa: “Esse é um ponto que a gente está perdendo na discussão do ajuste. Fica no horizonte do povo que o ensino público e o SUS não podem receber mais nenhum recurso porque isso seria irresponsabilidade econômica e administrativa”.
Outra forma de ‘desvio’ de recursos do Estado que deveriam financiar a saúde pública acontece por meio da renúncia fiscal, um mecanismo em que o governo diminui ou mesmo abre mão de receber alguns impostos para incentivar um determinado ramo da economia. No caso da saúde, esse artifício tem sido amplamente usado, por exemplo, para fomentar a compra de planos de saúde ou fortalecer hospitais privados (inclusive muitos de luxo, como o Albert Einstein e o Sírio Libanês) contemplados com o selo de ‘filantrópicos’. Somadas todas as formas de desoneração da área da saúde, tanto de pessoa física (por meio do Imposto de Renda) quanto de empresas, R$ 18,3 bilhões deixaram de entrar nos cofres do governo federal em 2012 (últimos dados disponíveis), de acordo com estudos do pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Carlos Ocké-Reis – como se pode ver, só esse valor cobriria todo o corte de orçamento que o Ministério da Saúde sofreu, e ainda sobraria dinheiro.
Quem não acompanhou a luta pela criação de um sistema universal de saúde no Brasil e se preocupa com o ajuste fiscal na saúde de forma mais pragmática talvez ache que a estratégia de se financiar com recursos públicos uma oferta de saúde em instituições privadas pode ser um caminho interessante para dar conta das necessidades da população. Toda a experiência exitosa dos países nos quais o movimento sanitário se inspirou para defender o SUS já seria suficiente para desmistificar essa ideia de que a saúde pode ser comprada como um serviço num mercado privado. Mas nem é preciso ir tão longe: para desanimar os mais esperançosos, basta uma olhada nos resultados da pesquisa de saúde citada na abertura desta matéria. Na época, a manchete dos jornais chamava atenção principalmente para o fato de que 93% dos entrevistados estão “insatisfeitos” com a saúde e que 60% deles avaliam como ruim ou péssima a saúde no Brasil. Um olhar mais rigoroso sobre os dados, no entanto, mostra que esse percentual diminui para 54% quando se trata especificamente do SUS, o que, ao contrário de todo o discurso que elogia o mercado, indica uma insatisfação maior com a saúde privada. Na outra ponta, a pesquisa mostra que apenas 6% dos brasileiros classificam a saúde brasileira como boa ou excelente, um número que dobra (12%) quando a avaliação é especificamente sobre o sistema público.
Não é por acaso que, entre aqueles que lutam pelo fortalecimento do SUS, soa cada vez mais alto o aviso de que ‘Saúde não é mercadoria’.
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