segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Acesso ao atendimento médico


Leonardo Fontenelle
 
Semana passada eu escrevi sobre a futilidade de se discutir prioridade no atendimento à saúde, com ênfase para as unidades básicas de saúde. A partir do momento em que a maioria das pessoas a serem atendidas têm prioridade, o melhor é deixar de discutir quem passa na frente, e providenciar para que todos sejam efetivamente atendidos, e logo.

Isso também vale para o atendimento às urgências nas unidade de saúde. Num pronto-socorro, onde quase todos os atendimentos são de urgência, faz sentido usar um sistema de triagem (ou acolhimento) para avaliar quem precisa ser atendido antes dos demais. Já numa unidade básica de saúde, quase toda demanda espontânea é pouco ou nada urgente, ao menos em termos biomédicos, o que não significa que possa esperar até o agendamento do mês que vem.

Não adianta gastar tempo, espaço físico e recursos humanos avaliando, por exemplo, o grau de urgência do atendimento a alguém que acabou de perder uma receita de medicamento para prevenir crises convulsivas. Se o atendimento não for realizado logo, a pessoa irá piorar de sua condição clínica e aí será uma emergência. E, se for para atender mesmo à pessoa, que tal fazer isso hoje, ou num prazo de 48 horas, para evitar o acúmulo de serviço?

A forma tradicional de se a agendarem os atendimentos médicos em unidades básicas de saúde, “abrindo” semanalmente ou mensalmente um número fixo de vagas (reservando algumas para urgências), é muito bem adaptada aos contextos em que não será possível atender a todo o mundo. Se, por um lado, é necessário mudar a forma de agendamento para melhorar o acesso, também é necessário que a estrutura do serviço seja adequada.

Quando digo estrutura, não digo apenas ambiente físico, mas principalmente recursos humanos. Para começar, é óbvio que precisa haver uma proporção razoável de médicos (e outros profissionais) por habitante. A Política Nacional de Atenção Básica (tanto a de 2011 quanto a de 2006) estipula que nenhuma equipe de Saúde da Família tenha mais do que 4 mil pessoas sob seus cuidados, mas, como eu já disse ano passado, nunca ouvi falar de algum município que tenha sido punido por sobrecarregar uma equipe de Saúde da Família. Já a 14ª Conferência Nacional de Saúde recomendou que cada equipe de Saúde da Família seja responsável por no máximo 2500 pessoas, um número bem mais razoável (se queremos prover uma atenção primária à saúde com qualidade) mas por isso mesmo ainda mais difícil de atingir.

A rotatividade médica, tão prejudicial à saúde da população, prejudica em muito o acesso às consultas. Quanto melhor um médico conhece a pessoa sendo atendida, menor o tempo de que ele precisa para atendê-la (referência), de forma que ele pode atender a mais pessoas em sua jornada de trabalho. O prejuízo ao acesso à consulta médica é uma das formas através das quais uma questão de recursos humanos (a rotatividade) pode influenciar a taxa de internações preveníveis. A boa notícia é que a rotatividade médica pode ser reduzida com melhorias na gestão.

A maneira do profissional conduzir o atendimento também influencia a disponibilidade de vagas para atendimento. A abordagem centrada na pessoa (em oposição à abordagem biomédica, centrada na doença) diminui a necessidade de reavaliações (referência), e assim pode aumentar disponibilidade de vagas para consulta médica. A abordagem centrada na pessoa é pouco conhecida pelos médicos no Brasil, mas é popular entre os especialistas em medicina de família e comunidade, o que nos remete à necessidade de termos um número suficiente de profissionais adequadamente capacitados para seu trabalho.

Já discuti aqui várias vezes a importância de que os médicos das unidades básicas de saúde sejam especialistas em família e comunidade; para quem não está familiarizado com os argumentos, sugiro o artigo que escrevi para o dia do médico de família e comunidade do ano passado. Se você é médico e ainda não conhece a abordagem centrada na pessoa, recomendo fortemente a leitura dos livros Medicina centrada na pessoa: Transformando o método clínico, de Moira Stewart e colaboradores (3ª edição, Artmed, 2010), e A nova consulta: desenvolvendo a comunicação entre médico e paciente, de David Pendleton e colaboradores (2ª edição, Artmed, 2011). (Declaração de conflito de interesses: recebi da Artmed um exemplar do Tratado de Medicina de Família e Comunidade em pagamento por ter escrito um dos capítulos, e sou membro da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, que colaborou com a Artmed na edição dos livros.)

Em resumo, na atenção primária à saúde, inclusive na estratégia Saúde da Família, a dificuldade maior não é entender que uma pessoa convulsionando deve ser atendida antes de uma pessoa com febre ou dor, e que essa deve ser atendida antes de outra que perdeu sua receita médica. O desafio é atender a todo o mundo. Com profissionais qualificados e em número suficiente, é possível flexibilizar o agendamento de consultas (urgentes e não urgentes), e assim garantir que as pessoas tenham acesso ao atendimento médico.

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