'O SUS é uma proposta muito competente'
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Uma avaliação crítica, lúcida e realista da situação atual do Sistema
Único de Saúde (SUS). Esse é o resultado da entrevista concedida ao Informe ENSP pelo
sanitarista Gastão Wagner, professor do Departamento de Medicina
Preventiva e Social da Unicamp. Nela, o professor defende uma reforma
administrativa da gestão do SUS baseada no serviço público, com
estrutura pública, e censura a municipalização excessiva desse Sistema.
Wagner também falou do subfinanciamento crônico, com destaque para a
falta de investimento no setor. “O Brasil gasta 3,5% do produto interno
bruto (PIB), ao passo que outros países gastam 10%.” Gastão Wagner
critica as organizações sociais, mas acredita que não é possível
desmontar o Sistema. Ao fim da entrevista, ele conclama para a
reconstrução do movimento sanitário. Confira!
Informe ENSP: Como o senhor avalia os problemas de gestão do SUS?
Gastão Wagner:
O SUS é uma proposta muito competente. Temos problemas de implementação
gravíssimos ocasionados pelos atores sociais. Hoje, o principal ator
social é o gestor. Os impasses não podem ser resolvidos pelos gestores
porque estão comprometidos com os governos. Há dificuldades de
integração entre municípios, estados e União, e entre o Ministério da
Saúde e as secretarias estaduais. A autonomia faz com que o Ministério
tenha algumas prioridades, e os estados e municípios, outras. Outra
questão é a política de recursos humanos do SUS, que é muito ruim. Os
trabalhadores são mal remunerados, não têm estabilidade, nem
aposentadoria adequada. Atualmente, aproximadamente 700 mil deles estão
em contratos precários. É necessário desenvolver uma política de pessoal
específica para o SUS, para várias áreas de atuação diferentes, como
atenção básica, saúde mental. Os funcionários do SUS e a gestão devem
ser municipais. Essa lógica privatista que está em vigor é um problema
gravíssimo.
Informe ENSP: E o problema do subfinanciamento?
Gastão Wagner:
O subfinanciamento é crônico, há uma oposição conservadora contra o
SUS. Não há disposição política dos governos para fazer um investimento
maior no Sistema. Quando um município começa a expandir o SUS, passa a
ter problemas de prestação de contas por gastar muito com recursos
humanos. A justificativa utilizada é a terceirização, a contratação de
prestação direta de serviços por entidades privadas, o que aumenta a
fragmentação e dificulta a gestão do SUS.
O
Brasil gasta 3,5% do PIB, ao passo que outros países gastam 10%. Isso
tem repercussões negativas no acesso e está na base das filas. O modelo
da saúde suplementar não tem viabilidade econômica. Vivemos um dilema
delicado porque a política de valores do SUS (universalidade,
integralidade, equidade, descentralização e participação social) está
ameaçada pela sua má fama de implementação.
Informe ENSP: As organizações sociais precisam ser revistas?
Gastão Wagner:
Sou contra as organizações sociais. Elas estão enterrando o SUS. A
fragmentação gerencial é um problema. O Ministério da Saúde possui
muitos programas. Então, cada governo estadual elege os que querem
trabalhar na sua região. Desse jeito regionalizado, o Sistema não anda.
Não fizemos a reforma da gestão do SUS. Há dificuldades de gestão, como a
lei de responsabilidade fiscal e a burocracia da administração direta
que não foram adaptadas para o sistema, emperrando licitações, compra de
produtos, contratações. É preciso diminuir os cargos de confiança,
criar um plano de carreira justo. Resolve-se a questão com
terceirizações e privatizações, em vez de se discutir uma nova estrutura
organizacional para o SUS. Defendo uma reforma administrativa da gestão
do Sistema baseada no serviço público, com estrutura pública, cuja
gestão independa dos mandatos de presidentes, governadores e prefeitos.
No entanto, esclareço que defendo o fim das organizações sociais, não a
demissão dos trabalhadores por elas contratados. Temos de lutar, mas não
dá para desmontar o sistema porque senão vira caos.
Informe ENSP: Como está a municipalização do SUS?
Gastão Wagner:
A municipalização foi muito radical porque os municípios não dão conta
da rede integral. O Brasil não conseguiu a governabilidade de criar
regiões de saúde, com todos os serviços que garantam a integralidade. O
Sistema é muito fragmentado. A proposta de um sistema de saúde formulado
para considerar a prevalência de problemas de saúde e do território
ainda é um desafio para o SUS, apesar de o texto constitucional e a
legislação complementar conterem diretrizes explícitas nessa direção,
como hierarquização, regionalização e integralidade. A excessiva
autonomia dos municípios e a ausência relativa dos estados na gestão da
rede de serviços e programas dificultam a regionalização e a
continuidade de projetos, que acabam vulneráveis a conveniências
eleitorais.
Outra questão é a existência de uma
rede com várias formas jurídicas, principalmente dos hospitais que
prestam serviço para o SUS (privados, filantrópicos, empresas públicas,
autarquias, organizações sociais e fundações estatais).
Perto de 70% da capacidade hospitalar do SUS é comprada por meio de
contratos e convênios. Por isso, apesar de o Brasil ter, legalmente, um
sistema público de saúde, o gasto público é menor que o gasto privado.
Nos países que têm sistemas nacionais de saúde, o gasto público de saúde
é de 70% a 90%. No Brasil, o mercado privado tem 54% do recurso
financeiro para gastar em saúde e atende apenas a 25% da população, com
um padrão de atendimento igual ou pior ao do SUS. Já o Sistema tem 46% e
atende, no mínimo, a 70% ou 75% da população, além de fazer muitas
coisas para quem tem saúde suplementar.
Informe ENSP: Para enfrentar essa fragmentação do sistema, vieram a equipe de referência, o apoio matricial...
Gastão Wagner:
A proposta de equipe de referência e apoio matricial para os serviços
de saúde e para a rede assistencial vem enfrentar a tendência à
fragmentação da atenção e desresponsabilização assistencial. Ela
depende, porém, de transformações organizacionais importantes, por causa
do seu compromisso com a mudança nas relações de poder na organização,
que busca a democracia organizacional e a valorização dos trabalhadores,
sem deixar de lado a eficácia clínica.
No
entanto, é preciso admitir que os problemas estruturais dificultam a
proposta de equipe de referência e apoio matricial, uma vez que não
basta que uma equipe de atenção primária deseje se relacionar na forma
de apoio matricial com outros serviços. A receptividade deve ser
incentivada pelos gestores, por meio de contratos que contemplem essa
atividade.
Informe ENSP: O movimento sanitário precisa ressurgir?
Gastão Wagner:
Precisamos nos espantar novamente e reconstruir o movimento sanitário.
Parte dele acredita no sistema privado. Uma comissão do Senado Federal
propõe a reforma do SUS, a criação de um sistema misto no Brasil, que
integraria a saúde suplementar, o setor privado, o mercado e o SUS. Essa
comissão está com a maioria de partidos que, no passado, apoiou o
SUS. Teremos de lutar contra isso. A presidenta Dilma reuniu-se com
algumas empresas de saúde suplementar. Fala-se que o Estado brasileiro
passaria a comprar serviços, com isenção fiscal. Enquanto isso, no SUS
falta dinheiro, e temos um subfinanciamento.
Profissionais de saúde e milhões de brasileiros que dependem do SUS
reagiram. Os intelectuais e algumas entidades profissionais também estão
defendendo o financiamento da atenção básica, do crescimento do SUS, da
diminuição do clientelismo, do partidarismo, do desvio de recursos.
Essa ameaça está obrigando o ressurgimento do movimento sanitário. O que
nos falta é um movimento unificado, como a 8ª Conferência Nacional de
Saúde, de 1986. A exclusão do SUS significa deixar mais da metade da
população brasileira sem acesso.
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