Imunidade às avessas - Lúpus eritematoso: auto-agressão do organismo feminino Márcia Wirth e Ana Manssour - saude@marciawirth.com.br e ana.manssour@plenamulher.com.br
Uma característica comum do lúpus é a mancha avermelhada no rosto em forma de borboleta. [Foto:10954225 By Pshek at iStockphoto] O lúpus exige tratamento cuidadoso por especialistas. Pacientes tratadas adequadamente têm condições de levar uma vida normal. As que não se tratam, acabam tendo complicações sérias, às vezes, incompatíveis com a vida
Diante das incertezas na vida, o ser humano tenta encontrar explicação para fatos a primeira vista inexplicáveis. E um deles é a existência de doenças autoimunes como o lúpus. Os cientistas ainda tateiam em busca de motivos pelos quais as próprias defesas do corpo passariam a encarar o organismo como um adversário em um campo de batalha.
A herança genética tem sua parcela de responsabilidade nesse processo do sistema imunológico. Mas, apesar da predisposição, muitos passam a vida toda sem apresentar essa reação “estranha”dos guardiões do corpo, o que indica um maior sinal de que fatores ambientais atuariam como estopins importantes para a auto-atrição.
Pesquisadores dos quatro cantos do globo querem decifrar quais seriam os gatilhos das doenças autoimunes. O lúpus encaixa-se neste perfil de pesquisa. “É uma doença rara, mais freqüente nas mulheres do que nos homens, provocada por um desequilíbrio do sistema imunológico, exatamente aquele que deveria defender o organismo das agressões externas causadas por vírus, bactérias ou outros agentes. O anticorpo, que é um mecanismo de defesa, passa a ser um mecanismo de auto-agressão nessas pacientes. O que caracteriza a doença auto-imune é a formação de anticorpos contra seus próprios constituintes”, explica o reumatologista Sergio Bontempi Lanzotti, diretor do Instituto de Reumatologia e Doenças Osteoarticulares (Iredo).
No lúpus, a defesa imunológica se vira contra os tecidos do próprio organismo como pele, articulações, fígado, coração, pulmão, rins e cérebro. Essas múltiplas formas de manifestação clínica, às vezes, confundem e adiam o diagnóstico apropriado. Giulianna Aquarone, 29 anos, descobriu que tinha Lúpus aos 17, quando estava fazendo vestibular. “Comecei a ter umas dores no joelho e na sola do pé. Fui no ortopedista, fiz exames e não deu nada. Ele me indicou um reumatologista e disse para eu ir o quanto antes. Assim que cheguei, ela já solicitou os exames que deram positivo para lúpus”, conta Giulianna. “O lúpus exige tratamento cuidadoso por médicos especialistas. Pacientes tratadas adequadamente têm condições de levar uma vida normal. As que não se tratam, acabam tendo complicações sérias, às vezes, incompatíveis com a vida”, alerta o reumatologista.
“Fiquei muito triste quando descobri, pois estava entrando na faculdade, no auge da adolescência”, lembra Giulianna. “E como estava tomando imunossupressores muito fortes, não podia ficar em lugares fechados, tinha que fazer uma dieta super chata, não podia tomar sol... Mas logo me adaptei a minha nova vida e nunca encarei que eu era ‘doente’, acho que por isso que eu nunca tive manchas na pele e nem complicações mais graves. O meu problema é no rim, já perdi 40% da minha função renal, mas isso não é grave. Podemos viver tranquilamente com até 30% dele... (rs) Hoje eu levo super na boa, não tenho problema nenhum com isso, dou risada e ainda brinco!”
Entenda melhor o que acontece...
“O lúpus dificilmente aparece em meninas que ainda não menstruaram. Em geral, o acometimento coincide com a época da menstruação e atinge mulheres na faixa entre 15 e 30 anos. Se não há lesão renal e cerebral no primeiro surto, trata-se do lúpus benigno caracterizado por lesões de pele, asa de borboleta, dor nas juntas, sintomas controláveis com medicação. É também provável que esta paciente não apresente os problemas ligados com o passar da idade e venha a falecer de outra causa, que não o lúpus”, diz Sérgio Lanzotti. Se no primeiro surto, porém, a paciente manifestar lesão renal ou cerebral, ou as duas ao mesmo tempo, é sinal de mau prognóstico da doença.
Havia grande confusão diagnóstica em relação ao lúpus até a Sociedade Americana de Reumatologia enunciar os critérios de diagnóstico da doença, em 1971. A mulher que preencher quatro deles seguramente tem lúpus.
Os dois primeiros referem-se à mucosa bucal. Dentre outras lesões orais importantes, aparecem úlceras na boca que, na fase inicial, exigem diagnóstico diferencial com pênfigo, uma doença freqüente em países tropicais. Pode ocorrer também mucosite, uma lesão inflamatória causada por fatores como a estomatite aftosa de repetição, por exemplo.
“O terceiro critério diagnóstico envolve a chamada buttefly rash, ou asa de borboleta, que muitos consideram o critério mais importante, mas não é. Trata-se de uma lesão que surge nas regiões laterais do nariz e prolonga-se horizontalmente pela região malar no formato da asa de uma borboleta. De cor avermelhada, é um eritema que geralmente apresenta um aspecto clínico descamativo, isto é, se a lesão for raspada, descama profusamente”, explica o diretor do Iredo.
O quarto critério é a fotossensibilidade. Por isso, o médico deve sempre investigar se a paciente já apresentou problemas quando se expôs à luz do sol e provavelmente ficará sabendo que mínimas exposições provocaram queimaduras muito intensas na pele, especialmente na pele do rosto, do dorso e de outras partes do corpo mais expostas ao sol nas praias e piscinas.
“Pacientes que já têm lúpus diagnosticado devem proteger-se da radiação solar e usar fotoprotetor sempre, porque não é só na praia e na piscina que o sol é intenso. A radiação solar, em especial os raios ultravioleta prevalentes das dez às quinze horas, é a substância exterior que agride as pessoas que nasceram geneticamente predispostas. Em estudos conduzidos sobre a doença foi possível detectar inúmeros casos de pacientes que tiveram o primeiro surto logo após ter ido à praia e se exposto horas seguidas à radiação solar. Em geral, eram pacientes do sexo feminino, já que a incidência de lúpus atinge nove mulheres para cada homem”, diz Lanzotti.
Giuliana relata que não mudou muito seus hábitos depois do diagnóstico de lúpus. “Na verdade não mudei muita coisa não. Eu nunca gostei muito de tomar sol, de ficar estirada na praia, então hoje em dia eu fico embaixo do guarda-sol e é tranqüilo. Não deixei de ir à praia, nem de me divertir.” Apesar disso, ela lembra que é preciso aprender a tomar alguns cuidados: “Demorei bastante tempo para ter disciplina para tomar os remédios todos os dias, mas, hoje, meu celular desperta e eu tomo direitinho! Não posso mais beber como antes, tenho que evitar o sal por causa do rim e por causa da retenção que a cortisona causa, mas basicamente só isso. Tenho uma vida basicamente normal.
O quinto critério diagnóstico é a dor articular, ou seja, dor nas juntas, geralmente de caráter não-inflamatório. É uma dor articular assimétrica e itinerante que se manifesta preferentemente nos membros superiores e inferiores de um só lado do corpo e migra de uma articulação para outra. Geralmente, é uma dor sem calor nem rubor, sem inchaço, nem vermelhidão, os três sinais da inflamação. Há casos, porém, em que os três sintomas se fazem presentes.
“A dor é frequente nas articulações dos membros superiores. Acomete punho, cotovelo, ombro e dedos das mãos, como se fosse um quadro de artrite reumatóide. Portanto, a artralgia, às vezes, a artrite, e, excepcionalmente, a inflamação estão presentes no primeiro surto de 90% das pacientes. Por isso, elas procuram os reumatologistas. Se a paciente não apresenta dor articular, o diagnóstico clínico pode ficar em suspenso, pois não há rigidez matutina como na artrite reumatóide. É uma dor migratória não muito intensa. Isso, muitas vezes, retarda o diagnóstico, porque a paciente entra em remissão e não procura o tratamento médico apropriado”, relata Sérgio Lanzotti.
O sexto critério, e um dos mais importantes, é a lesão renal. Paciente com lesão renal acompanhada de hipertensão no primeiro surto tem prognóstico mais reservado. “A hipertensão arterial aponta que surgiu um processo inflamatório nas membranas das estruturas envolvidas no sistema de filtração do sangue que atravessa os rins e a paciente é acometida por glomerulonefrite”, conta o reumatologista Sergio Bontempi Lanzotti, diretor do Instituto de Reumatologia e Doenças Osteoarticulares (Iredo).
No campo das doenças do sangue, o lúpus estabelece as chamadas penias. Em 20% dos casos, a anemia hemolítica coincide com a ruptura dos vasos sanguíneos e a fragilidade dos glóbulos vermelhos, levando à anemia hemolítica autoimune, uma manifestação da síndrome pré-lúpica. A paciente pode ir ao consultório do hematologista com esse problema e logo em seguida, ou, em alguns anos depois, manifestar o quadro clínico completo do lúpus eritematoso.
Outra manifestação de penia mais incidente é a leucopenia, ou seja, a diminuição de glóbulos brancos, dos leucócitos. “Em 40% dos casos, a leucopenia é traduzida pela produção de anticorpos principalmente dirigidos contra os neutrófilos, um tipo específico de glóbulos brancos, que hoje fazem parte do diagnóstico laboratorial do lúpus. Outra possibilidade é a ocorrência da plaquetopenia, ou púrpura trombocitopênica idiopática, uma lesão provocada por anticorpos contra as plaquetas que não tem etiologia definida e que pode preceder, em alguns anos, a instalação do lúpus”, afirma Sérgio Lanzotti.
A incidência de pericardites e de pleurites também podem ocorrer em pacientes com lúpus. Em 70% dos casos, a pericardite é subclínica e diagnosticada apenas nas autópsias.
“Outro critério para confirmação do diagnóstico da doença é o imunológico. Essas pacientes apresentam uma reação falsamente positiva para sífilis e manifestam a síndrome anticoagulante lúpica, que se caracteriza por trombose, embolias e abortos de repetição”, enumera Sérgio Lanzotti.
Lúpus e maternidade
Há um conceito muito difundido de que pacientes lúpicas não devem, não podem e não engravidam. Isso provém de um problema imunológico. “Algumas dessas mulheres produzem anticorpos contra um constituinte especial chamado fosfolípedes, ou seja, substâncias com o radical fósforo do tipo gorduroso, situadas na circulação. Pacientes com esses anticorpos têm abortos recorrentes, outro sinal de pré-lúpus”, esclarece o reumatologista.
Além de abortos de repetição, as pacientes com lúpus têm coágulos em várias partes do corpo. Formam trombos no cérebro e formam êmbolos. “Uma paciente lúpica que não tenha esse componente talvez possa ter uma gravidez normal. No entanto, aquelas que apresentam lesão renal estão mais sujeitas a abortos recorrentes ou a dar origem a um feto com pouca chance de sobrevivência. Outras pacientes com lúpus podem não apresentar dificuldades para engravidar, mas a gravidez pode ser difícil, exigindo acompanhamento pré-natal feito por uma equipe multidisciplinar”, avisa Sérgio Lanzotti.
Diante de uma paciente jovem com lúpus que deseja engravidar, o melhor é oferecer informação sobre os riscos desta atitude. “Em 80% dos casos, pode haver uma piora da doença, ao contrário do que ocorre com a artrite, que melhora durante a gravidez”, explica o diretor do Iredo.
Sobre os planos de maternidade, Giulianna está bem informada e segura a respeito: “Na verdade o Lúpus não é hereditário, ele é genético. Segundo meus médicos, as chances do meu filho ter são as mesmas do seu. Não tenho nenhum caso na minha família, por exemplo! E quanto a ser mãe, isso também não é mais um problema hoje em dia. Antigamente realmente era mais complicado, muitas mulheres inclusive ficavam sabendo que tinham Lúpus somente quando ficavam grávidas. Mas hoje a maioria das mulheres que tem Lúpus tem filho normalmente. Segundo meu médico, a única recomendação é que vou ter que programar um bebê. Quando quiser ter filhos, terei que estar bem, com o Lúpus controlado, para poder parar de tomar alguns remédios e ter uma gravidez acompanhada, porém tranquila. Quero fazer isso daqui a uns 2 ou 3 anos.”
Opções terapêuticas
No passado, todos os casos de lúpus eram tratados com cortisona e seus derivados. Hoje, contamos com recursos melhores, inclusive em relação à própria cortisona. “Os corticóides modernos não são dotados de efeitos colaterais como aumento de pressão e grande retenção de sal e água. Podem ser injetados por via endovenosa. É o chamado pulso terapêutico que consiste em hospitalizar a paciente e infundir de uma só vez, numa única aplicação, a quantidade de corticóide apropriada a cada caso. Os pacientes suportam bem essa técnica terapêutica, a tendência à infecção é menor”, conta o médico.
Segundo Sérgio Lanzotti, a grande mudança no tratamento do lúpus foi o advento do emprego de um imunossupressor usado nos primórdios dos transplantes renais, que, hoje, pode ser aplicado nas pacientes com lúpus sob a forma de pulso. Outras drogas usadas inicialmente nesse tipo de transplante foram aproveitadas pelos reumatologistas para controlar a formação dos complexos imunes.
Giulianna está adaptada com novo tratamento que vem fazendo já há algum tempo. “Hoje, eu faço um tratamento com ciclofosfamida, que é uma espécie de quimioterapia, que faço de 3 em 3 meses, e tomo alguns remédios, como a cortisona, que já me deixou muito inchada, mas hoje eu diminuí e estou desinchando aos poucos. Acho que essa é a pior parte do lúpus pra mim – ficar inchada por causa da cortisona. Isso é a única coisa que me deixa realmente triste”, afirma.
“Como alternativa terapêutica há, ainda, a plasmaferese, que pode ser aplicada quando a lesão renal está muito ativa. A paciente é internada para retirar a grande quantidade de plasma. Com isso, o hematologista elimina os complexos imunes circulantes em benefício da evolução benigna das lesões renais e cerebrais”, explica o reumatologista.
Atualmente, as pesquisas e estudos para o tratamento do lúpus concentram-se no desenvolvimento de imunossupressores e imunomoduladores específicos para o combate e controle da doença.
Contatos: Instituto de Reumatologia e Doenças Osteoarticulares site: www.iredo.com.br Dr. Sérgio Lanzotti no Twitter: http://twitter.com/sergiolanzotti |
quinta-feira, 1 de março de 2012
Lúpus
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