terça-feira, 25 de junho de 2013

Diferentes formas de tratamento



24/06/2013 08h00

Tratamentos recuperam apenas 30% dos dependentes de crack

Caps, comunidades terapêuticas e consultórios de rua são principais recursos para ajudar os usuários a vencerem vício.

Na Associação Comunitária Social e Beneficente Ebenézer (Acosbe), uma comunidade terapêutica, o tratamento dos dependentes químicos varia entre sete e dez meses
Na Associação Comunitária Social e Beneficente Ebenézer (Acosbe), uma comunidade terapêutica, o tratamento dos dependentes químicos varia entre sete e dez meses - Foto: Raíla Melo

“A euforia, a alegria, o sentimento é o melhor do mundo, não dá para explicar”, conta Samuel Altiers Assis dos Santos sobre a sensação de fumar crack. O sorriso que a lembrança traz, entretanto, se desfaz em seguida. “Mas não dura mais do que 20 segundos”, conta, desviando o olhar. Aos 29 anos, ele já está em sua 10º internação em comunidades terapêuticas. Cada vez que saía de mais alguns meses de tratamento, acabava em alguma “cracolândia” de novo.

As ações de combate ao uso de drogas, o tratamento dos dependentes químicos e a aplicação da justiça terapêutica são temas do Ciclo de Debates Um Novo Olhar sobre a Dependência Química, que acontece nesta segunda-feira (24/6/13), às 18 horas, e terça (25), a partir das 9 horas, no Plenário da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG). A Assembleia de Minas também inicia, nesta segunda (24), uma série de matérias sobre o tema e promove, no dia 10 de agosto deste ano, a 2ª Marcha contra o Crack e Outras Drogas.

Recaídas como a de Samuel são comuns entre os dependentes de crack
Recaídas como a de Samuel são comuns entre os dependentes de crack - Foto: Raíla Melo

Depois da primeira internação, em Divinópolis (Região Central do Estado), Samuel conseguiu um emprego e tudo ia bem até o dia do pagamento. “Peguei o salário e fiquei 17 dias sem voltar para casa. Sem banho, sem comida, sem sono, pior do que bicho”, conta. Agora em tratamento na Associação Comunitária Social e Beneficente Ebenézer (Acosbe), na Capital, ele tem um novo plano. “Quando eu sair daqui, minha mãe vai administrar todo o dinheiro que eu ganhar. Preciso de ajuda”.

Recaídas como a de Samuel são comuns entre os dependentes de crack. A maioria dos 27 alunos da Acosbe são reincidentes, e o índice de recuperação no Brasil não passa de 30% - seja nas comunidades terapêuticas ou nos Centro de Atenção Pisicosocial (Caps), os dois principais equipamentos de saúde para tratamento de dependentes hoje no País.

Apesar dos resultados semelhantes, a abordagem das instituições é diferente. Enquanto no Caps o tratamento dura cerca de quatro anos, em comunidades terapêuticas, como a Acosbe, varia entre sete e dez meses. O primeiro é governamental, o segundo é oferecido pela iniciativa privada e pelo terceiro setor, e muitas comunidades são comandadas por siglas religiosas.

ALMG em busca de soluções

Comissão permanente de combate ao crack é criada
 
O relatório final da Comissão Especial para o Enfrentamento do Crack da ALMG, que realizou várias audiências públicas em 2012 e foi transformada em comissão permanente em 2013, é claro ao enfatizar que as duas ferramentas – Caps e comunidades terapêuticas – são essenciais e deveriam ser complementares, e não antagônicas como são encaradas hoje.

“Todos os participantes das reuniões foram unânimes em afirmar que é necessário haver diferentes formas de tratamento disponíveis para o usuário de drogas, pois cada caso é singular e requer abordagem individualizada. Outro ponto consensual é que cada uma das instituições que compõe a rede, governamental ou não, tem seu lugar de importância”, diz a conclusão do documento, elaborado pelo relator, deputado Célio Moreira (PSDB).

Também é consenso que são necessários mais equipamentos de saúde. Em toda Belo Horizonte existem apenas três Caps. O programa do Governo do Estado que visa repassar dinheiro para algumas comunidades terapêuticas via prefeituras, chamado de Aliança pela Vida, foi adotado em menos de 200 dos 853 municípios. E esse não é o único problema do programa. “Ele é um avanço, mas o valor repassado para as comunidades terapêuticas é pouco”, diz o deputado Vanderlei Miranda (PMDB), presidente da Comissão de Prevenção e Combate ao uso de Crack e Outras Drogas da ALMG.

Glaicy Freitas (à dir.) sugere que os profissionais das comunidades terapêuticas recebam diretamente do Aliança pela Vida
Glaicy Freitas (à dir.) sugere que os profissionais das comunidades terapêuticas recebam diretamente do Aliança pela Vida - Foto: Raíla Melo
 
Propostas do Parlamento mineiro - A Comissão Especial conseguiu avanços importantes, como a inclusão de várias metas de combate ao crack no Plano Plurianual de Ação Governamental (PPAG) para o exercício de 2013. Um exemplo é a emenda apresentada para aumentar o aporte financeiro do Aliança pela Vida.

Outros aperfeiçoamentos também podem ser necessários. Glaicy Freitas, da Acosbe, explica que hoje o dinheiro do Aliança pela Vida é pago por dia frequentado na comunidade, mas isso dificulta a manutenção do trabalho, já que as contas são todas pagas mensalmente. “Preciso contar com uma verba para pagar psicólogos no fim do mês, por exemplo. Não posso correr o risco de não ter dinheiro porque um dos alunos desistiu no meio do tratamento, foi embora e eu não recebi o valor de parte dos dias”, reclama. A sugestão dela é que a verba seja destinada ao pagamento direto dos profissionais.

Alguns projetos de lei também foram apresentados pela Comissão de Prevenção e Combate ao uso de Crack e Outras Drogas. Um exemplo é o projeto que pretende aumentar as alíquotas do ICMS sobre bebidas alcoólicas, tabaco e armas, para destinar a verba ao Fundo Estadual de Prevenção, Fiscalização e Repressão de Entorpecentes (Funpren). “Não podemos nos iludir, precisamos de dinheiro para combater o problema. O Governo Federal diz ter separado R$ 5 bilhões para esse fim em 2013, Minas Gerais pleiteou R$ 480 milhões com projetos, mas ainda não vimos a cor do dinheiro”, conta o deputado Vanderlei Miranda.

Para o parlamentar, porém, a medida que poderia ter o maior impacto é resumida no tópico da conclusão do relatório que diz que é importante “sugerir ao Tribunal de Justiça (TJMG) a criação de programa de Justiça Terapêutica direcionada aos usuários de drogas e dependentes químicos que cometeram algum crime”. O modelo que a comissão tomou como base foi o da Corte de Drogas de Miami, visitada pelos parlamentares. “Os condenados podem escolher entre a prisão e o programa de tratamento, que pode ser clínica, grupo de apoio e uma série de outras opções. O índice de recuperação deles é de 70%, mais que o dobro do nosso”, diz Vanderlei Miranda.

Dois tratamentos, o mesmo resultado
Nos Centros de Atenção Pisicosocial (Caps), a maior parte dos pacientes são atendidos de segunda a sextas-feira durante o dia, e o tratamento é por tempo indeterminado. A crítica mais comum ao trabalho é que o usuário de drogas continua frequentando os mesmos lugares e convivendo com os amigos também dependentes do crack, por isso não conseguiria evitar o consumo.

“Excluir o usuário não é tratá-lo”, afirma Raquel Pinheiro, diretora do Centro Mineiro de Toxicomania
“Excluir o usuário não é tratá-lo”, afirma Raquel Pinheiro, diretora do Centro Mineiro de Toxicomania - Foto: Alair Vieira
 
“É preciso ajudá-lo a desenvolver a resistência à tentação, que sempre vai existir. É um tratamento mais difícil e demorado, mas é mais efetivo”, defende Raquel Martins Pinheiro, diretora do Centro Mineiro de Toxicomania (CMT-Fhemig), o primeiro Caps de Belo Horizonte. “Excluir o usuário não é tratá-lo”, completa.

O argumento de Pinheiro já carrega em si uma crítica ao tratamento oferecido nas comunidades terapêuticas, onde o dependente é segregado durante meses, fica com pouco contato com a família e os amigos enquanto recebe acompanhamento psicológico e, muitas vezes, frequenta cursos profissionalizantes. “Depois desse tempo, ele volta a morar no mesmo bairro, conviver com as mesmas pessoas e não terá aprendido a dizer não às ofertas de drogas”, argumenta a diretora do CMT.

Glaicy Jaqueline de Freitas, presidente da Acosbe, porém, defende que muitas vezes não tirá-lo por um tempo do meio em que vive significa decretar a morte do usuário. “Eles chegam aqui quando já estão no fundo do poço. É tratamento ou morte”, afirma.

A família no tratamento Depois de dias sozinho na rua, dilacerado pelas dores causadas pela pancreatite aguda e a cirrose – doenças adquiridas depois de 13 anos de abuso de drogas – Samuel Altiers implorou por socorro da família, que já havia desistido de ajudá-lo. No hospital, recebeu o ultimato: ou se tratava ou morreria. Na melhor das hipóteses, sobreviveria, mas ficaria paraplégico. Agora, ele garante que será a última internação. “Vou retomar a minha vida”, diz. Para isso, precisa reconquistar os dois filhos, uma menina de 9 anos e um menino de 5, e conseguir um novo emprego.

O distanciamento da família é recorrente nos relatos dos usuários. Depois de algum tempo convivendo com roubos e agressões em casa, idas e vindas de tratamentos que quase sempre não geram resultados duradouros, pais, maridos e esposas acabam optando por cortar os vínculos – atitude muitas vezes essencial para a própria segurança dos familiares. Quando o usuário resolve parar, porém, especialistas dizem que o envolvimento dos parentes é importante para uma recuperação efetiva.

“Muitas vezes o aluno sai de nove meses de internação decidido a nunca mais voltar ao vício. Quando chega em casa, é recebido com um churrasco regado a cerveja e cigarro. É a família empurrando o ex-dependente para o vício de novo”, conta Glaicy Freitas, que afirma que o crack está associado ao uso de outras substâncias psicoativas, principalmente o álcool. “É a mesma coisa do cigarro. Muita gente diz que só tem vontade de fumar quando está bebendo – com o crack também é assim”, explica.

Van da saúde
Frederico Elpídio e Bárbara Coelho Ferreira integram equipes de consultórios de rua da Capital
Frederico Elpídio e Bárbara Coelho Ferreira integram equipes de consultórios de rua da Capital - Foto: Lia Priscila
 
“Às vezes, eles só precisam de água”, conta Frederico Elpídio, redutor de danos, membro de uma das equipes de consultórios de rua de Belo Horizonte. Preservativos também estão sempre entre os materiais mais distribuídos entre a população de rua atendida. A van que serve como consultório leva um grupo formado por assistentes sociais, educadores, psicólogos e enfermeiros para locais onde há concentração de pessoas em situação de uso de drogas. Além de suprimentos, são oferecidos atendimentos médicos básicos e oficinas para incentivar outros hobbies, dissociados do uso de drogas.

“Atendemos, por exemplo, um músico que estava afastado de tudo por causa do crack. Aos poucos, ele está agora retomando seu grupo de samba e sua vida”, conta a psicóloga Bárbara Coelho Ferreira, integrante de outra equipe que atua na Capital mineira. Há ainda um trabalho de fortalecimento ou retomada dos laços familiares dos moradores de rua.

Os consultórios são parte da política antidrogas de redução de riscos, adotada desde 2003 pelo Governo Federal. A abordagem é uma forma de oferecer atendimento de saúde mesmo aos usuários que não querem ou ainda não conseguiram parar o consumo de crack. A política é cumprida especialmente pelos consultórios de rua, equipamentos de saúde que surgiram pela primeira vez na Bahia, em 1995.

Em Belo Horizonte, o serviço está disponível há quase três anos e hoje são cinco equipes volantes que prestam serviços na Capital. Em 2012, 11.700 pessoas foram atendidas por elas, sendo que 640 foram acompanhados por um período mais longo – desses, 404 foram encaminhados para tratamentos mais amplos, em locais como o Caps, para que o usuário tentasse largar o vício. “Os consultórios de rua são uma ponte entre os usuários e os outros equipamentos de saúde”, explica a psicóloga Bárbara Ferreira.

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