quinta-feira, 27 de junho de 2013

Entrevista


“Nós temos que aproveitar o momento para pautar a reflexão crítica da saúde, porque sabemos que o projeto do SUS é capaz de dar conta deste clamor” 
 
 A presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), Ana Maria Costa, indica nesta entrevista que a proposta da presidente Dilma Rousseff, feita essa semana em resposta às manifestações, não atende às necessidades de uma saúde pública e de qualidade, e que é preciso aproveitar o momento para resgatar os ideais da Reforma Sanitária, que deram origem ao Sistema Único de Saúde, e que estão se esvaindo, principalmente, nestes últimos dois anos. Confira:

 
 
 
Como o Cebes enxerga o clamor da sociedade por saúde nas manifestações?

Para nós do Cebes, do movimento da reforma sanitária, estamos em clima de celebração. Há muito tempo que não temos uma participação popular, que coloca a saúde como objeto de luta popular, salvo as unidades nos conselhos e conferências de saúde, mas que não são de massa. Entretanto, nós temos que ter uma preocupação muito grande. A saúde aparece difusa, como uma necessidade do povo. Não vimos uma demanda pelo SUS. E é natural que isso aconteça. Não tínhamos expectativa que o povo lutasse pelo SUS, porque para ele é uma experiência negativa.

Nós temos que aproveitar o momento para pautar a reflexão crítica da saúde, porque sabemos que o projeto do SUS é capaz de dar conta deste clamor. A grande missão agora é expandir o debate para as massas, para que a população possa aderir ao projeto da reforma sanitária. O que não podemos é que a população clame por plano de saúde, que tenhamos uma mobilização contra o aumento do plano de saúde, por exemplo. Imagine que frustração seria se começasse a aparecer a bandeira contra o aumento dos planos de saúde descontextualizado de uma condição da saúde como um direito social? Na verdade, a nosso favor, a rua está tomada por direitos sociais, com as pautas de direito ao transporte, à educação... Dentro dessa ambiguidade, dessa polissemia, nós acreditamos que o projeto SUS entra revigorado nesse momento histórico brasileiro.

No discurso da Dilma, ela aponta como uma das propostas o perdão da dívida dos hospitais filantrópicos em troca de atendimento dos usuários do SUS. Como a Sra. avalia essa proposta?

O discurso de segunda-feira já foi mais adensado do que o de sexta, porque saiu da história dos médicos, e ampliou a proposta. Existem coisas consistentes, mas assuntos preocupantes. O Cebes se preocupa muito com a questão da ampliação da rede com os hospitais filantrópicos com o perdão da dívida, porque essa agenda não tem potência de ampliar significativamente o acesso da população. Essa proposta é uma agenda periférica. Por que perdoar a dívida? Nós temos filantrópicos em situações precárias, mas grande parte são instituições lucrativas muito bem instaladas no cenário do setor hospitalar do Brasil, como o Sírio Libanês, a Clínica São Vicente de Paula e o Albert Sabin. São situações muito díspares para atribuir esse remédio do perdão da dívida, e com isso deixar de subtrair dos cofres públicos da saúde um recurso público importante em uma troca muito pouca significativa.

Nós temos hoje a dupla porta que não deu certo, e alguns filantrópicos passaram a oferecer outro tipo de serviço ao SUS, que nos causa muita preocupação: o Brasil lança mão de uma estratégia de conceder, como retorno da contribuição dos filantrópicos , que eles ofereçam a formação de gestores do SUS, como é o caso do Sírio Libanês. O que este hospital deveria fazer em contrapartida é abrir as portas para os usuários do SUS. Esse atendimento já é um pressuposto dos benefícios que as filantrópicas têm. Não podemos desperdiçar a expertise do hospital, e deixar somente para a população classe média alta. Para a questão da formação, deve -se investir nas escolas de governo, na Ensp, porque teremos a certeza de que essa formação é pensando ao interesse público e na lógica pública da saúde. Com a proposta da Dilma, nós estamos fazendo uma negociação não muito favorável, ela é tendenciosa. É importante ressaltar que as filantrópicas, quando vieram ao governo, pediram o perdão sem qualquer condição, o governo fez essa negociação de ampliar o compromisso de atendimento ao SUS. O papel do governo que defende o SUS e as normas constitucionais é o de insistir no pagamento dessa dívida, e, além disso, exigir o que essas instituições devem oferecer, como é o caso dos atendimentos, porque elas já são beneficiadas, já têm subsídios para o seu funcionamento por terem caráter filantrópico.

A presidente cita também que os investimentos já contratados em hospitais, UPAs e unidades básicas de saúde devem ser efetivados. O que são eles? Eles são uma solução hoje?

Os investimentos em hospitais e UPAs me parece reforçar o plano para a saúde que a presidente apresentou em sua campanha eleitoral. Esse plano que foi pautado na construção e ampliação das UPAs, hospitais e redes segmentadas, redes de atendimento como cegonha etc. É um plano fadado ao insucesso. A questão das UPAS tem uma resposta rápida para a população, para muitos problemas de saúde, para a questão do atendimento imediato, para a satisfação imediata, mas a pessoa não é só o momento. A população não requer só o atendimento emergencial. É importante, sem dúvida, e nós temos melhorado muito o atendimento emergencial no Brasil, mas se não implementarmos a rede integral de atenção à saúde no lugar das redes segmentadas, nós não iremos andar para o SUS que a Constituição definiu, como deveria ser.

É importante lembrar essa opção que o Ministério da Saúde fez das redes nestes últimos anos. Chamar de rede as intervenções focalizadas e localizadas em patologias, em grupos populacionais, em situações particulares, é um contrassenso. A rede por conceito é a que atende, busca, objetiva grupos e populações numa base territorial. Em meados do governo Lula foi feito um documento que apontava firmemente um caminho do que seria um projeto de rede consistente. Eu não entendi porque o governo Dilma abriu mão desse caminho que estava sendo construído por um fragmentado, que não são redes, não passam de programas verticais. Esses programas não fazem bem ao município. O Conasems [Conselho Nacional dos Secretarias Municipais de Saúde] vem denunciando há algum tempo o constrangimento que o MS vem fazendo aos municípios para conceder recursos, que estão sendo enviados só mediante promessa dos municípios implementarem suas redes programáticas. Isso é voltar para trás no SUS. Lamentavelmente o MS tem entrado nesse caminho incompreensível, que tem gerado um impasse no avanço do SUS.

E esse é o momento de voltar a discutir isso, de dizer à presidente Dilma que o SUS tem que retomar a sua via de implementação, de pensar a complexidade da saúde, da atenção primária, da assistência farmacêutica, para que não possamos retomar um caminho que abandonamos com ações verticalizadas.
E quanto à falta de médicos? É esse o maior problema?

Não é só médico que falta no Brasil. Temos deficiência de todos os profissionais da saúde de nível superior. Temos também uma grande concentração de médicos em alguns estados como o Rio de Janeiro e Brasília. Além disso, uma disparidade de salários de trabalhadores no SUS. Em Brasília, por exemplo, o médico se aposenta com salário de R$20 mil, e de Minas Gerais se aposenta com salário dez vezes menor. Existe um conjunto de injustiças, disparidades, que são frutos de uma negligência muito grande na legislação, que é a ausência de um plano de cargos e salários. Nós estamos vendo com essa situação de lacuna de médicos nas cidades pequenas das regiões Norte, Nordeste, e no interior de Santa Catarina e Paraná há muito tempo. E agora estamos vendo o resultado dessa negligência ao longo desses 25 anos. Que há falta de acesso é fato. A explicação para isso é um problema crônico que nós precisamos atacar.

Como o Cebes vê a polêmica questão da contratação dos médicos estrangeiros?


A contratação de médicos brasileiros ou estrangeiros como solução de caráter de emergência é importante, porque a população precisa ter o seu direito garantido de acesso a médico, enfermeiro, a todos esses profissionais que compõem a estratégia do cuidado à saúde. Por outro lado, nós chamamos a atenção que essa solução por si só não irá resolver o problema do recurso humano em saúde, da interiorização dos médicos. É preciso atrelar a isso uma convocatória para que governadores e prefeitos criem planos de cargos e salários. Sem isso, nós não iremos avançar. Agora esta questão esbarra na da lei de responsabilidade fiscal, que precisa ser debatida também. A solução é mais complexa. A outra questão é a prestação do serviço civil, como o Ministro Humberto Costa propôs, mas foi vetado no Congresso. Se formamos com dinheiro público profissionais de saúde, porque não criar mecanismos para que esses profissionais possam dar uma contrapartida ao dinheiro que foi investido nele? É uma possibilidade de você criar raízes desses profissionais no interior do Brasil e estabelecer uma outra lógica. Os juízes quando entram no Judiciário, quando passam no concurso, eles vão para o interior e depois com o tempo de carreira vão tendo a possibilidade de trocar de lugares e se aproximando das grandes cidades. Podemos criar dentro da perspectiva do plano de cargos e salários esse fluxo de profissionais. Precisamos buscar soluções adequadas à complexidade do problema. A mágica de contratar simplesmente, sem entrar no debate do corporativismo ou da discussão sobre a qualidade dos serviços desses médicos, não resolve a complexidade do problema, que é bem maior do que isso. O debate não pode ficar esvaziado na qualificação do médico, no Revalida... Essas questões são anexas nesse processo. Precisamos pensar nas questões estruturantes da gestão do trabalho em saúde.

Dilma também cita a ampliação do número de vagas nas universidades, e o consequente aumento do número de residentes. Hoje os médicos, principalmente aqueles que estudam em universidades públicas, estão sendo estimulados a trabalhar para o SUS?

O esforço que vem sido feito no modelo curricular por parte do Ministério da Saúde e da Educação merece ser aplaudido. Temos no campo da formação médica uma tensão muito grande. O mercado da medicina privada, da tecnologia, da especialidade, é muito mais atraente do que o sistema público. Mas, por si mesma, esta reforma não dará conta desse impasse maior, desse dilema do público e privado. Formar médicos comprometidos com o SUS ainda é um grande desafio. No fundo, os médicos que estão na prática médica, os professores universitários que formam esses indivíduos são já tendenciosamente voltados para esta outra lógica de ação, que é uma lógica anti-SUS. A atenção primária, - que é um conjunto de atividades de alta complexidade e de alta eficácia para a promoção da saúde, de qualificação do nível da saúde para a população, - é vista por estes profissionais como um trabalho menor. O SUS é um sistema menos importante, não há a formação de um comprometimento ético e político com a assistência pública dentro das universidades. O público é visto como o lugar das deficiências, das lacunas. Depois, quando formados, não será o lugar da maior dedicação destes profissionais, porque não é ali que ele não ganha dinheiro.

Onde dou aula, por exemplo, os profissionais induzem que os alunos pensem no SUS no âmbito da prova de residência, ou como um conhecimento que os protegerão dos percalços de uma carreira pública. Pego esse exemplo pessoal porque é emblemático como essa luta por uma ideologização da classe médica por um sistema público e comprometimento com a população é uma luta numa esfera subjetiva, de classe, que está por ser feita.

Entrevista concedida à Viviane Tavares - Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz)
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