Remédios: limites entre o uso racional e o abusivo
O consumo indiscriminado de medicamentos é
um problema mundial de saúde pública. Somente no Brasil, são consumidos,
diariamente, 90 milhões de comprimidos analgésicos.
por Guilherme Amorim
O que você faz quando
está com uma dor de cabeça ou diante de uma reação alérgica? E ao sentir
os efeitos da má digestão ou mesmo ao perceber o corpo manifestar um
desconforto muscular? Não seria incomum responder a isso com
naturalidade: “Ora, vou à farmácia e compro um analgésico, um
antialérgico e antiácido para o estômago”. Exemplos, aparentemente
simples, mas que retratam uma prática muito comum no Brasil: o hábito da
automedicação.
Hoje, a quantidade de
remédios consumidos pela população brasileira está na ordem dos milhões.
Para que se tenha uma ideia, são consumidos diariamente no país mais de
90 milhões de comprimidos analgésicos, como a aspirina, por exemplo. Em
todo o mundo, são 216 milhões de drágeas desse mesmo medicamento, por
dia. Tal exemplo, que foi apresentado pela Revista Ciência Hoje,
refere-se apenas a um tipo específico de analgésico, o que revela o
quanto o uso de medicamentos é, de fato, abusivo em todo o planeta.
O uso indiscriminado de
medicamentos já motivou até mesmo a Junta Internacional de Fiscalização a
Entorpecentes da Organização das Nações Unidas (Jife/ONU), a declarar,
em 2010, a situação como um problema mundial. Também pudera: o número de
viciados em remédios ultrapassa o de dependentes de outras drogas
(cocaína, heroína e ecstasy, por exemplo), dados da própria Junta.
Nesse contexto, ficam
alguns questionamentos: por que esse hábito é tão frequente? Existem
formas de controlar esse consumo desregrado? Até que ponto o acesso
facilitado a esses medicamentos contribui para que sejam comprados de
forma corriqueira, natural?
Com ou sem receita?
Em 2010, entrou em vigor, no Brasil, uma resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)
que determinou, por exemplo, a retenção de receita para a compra de
antibióticos, visando à redução do uso indiscriminado e desregrado do
medicamento.
A medida, que incomodou
no início, já é vista pela população, atualmente, como uma forma
proteção à saúde pública, uma vez que direcionou melhor o consumo e
também conteve a formação das chamadas 'superbactérias', isto é,
bactérias patogênicas que se fortalecem após o uso incorreto dos
remédios antimicrobianos.
Apesar disso, ainda é
fácil o acesso a outros medicamentos, como aqueles utilizados para
gripes e resfriados, dores de cabeça e musculares, cólicas, todos tidos
como problemas de menor gravidade. O sociólogo Levindo Costa, 35, por
exemplo, acredita que a forma como são disponibilizados os remédios fora
do balcão nas grandes farmácias contribui para maior consumo. No
entanto, não se considera um cliente estimulado pela facilidade. "Meu
consumismo não chega a tanto", pondera Costa, que faz uso de remédios
para gripe e reações alérgicas.
De acordo com a farmacêutica e diretora da Federação Nacional dos Farmacêuticos (Fenafar),
Célia Chaves, a classificação de um medicamento nas categorias de
isento da prescrição, sujeito à apresentação de receita e de sujeito à
retenção de receita depende da avaliação do risco que este produto pode
apresentar quando consumido pela população.
De qualquer forma,
lembra Célia, todos os medicamentos, quer sejam tarjados ou não, podem
apresentar risco se não forem utilizados da maneira e dose corretas, ou
usados em momentos inadequados e por pessoas erradas. "Permitir que o
acesso a qualquer tipo de medicamento ocorra de forma não qualificada,
ou seja, sem a possibilidade de, no mínimo, orientação do profissional
farmacêutico, sempre que necessário, pode contribuir para seu uso de
forma irracional", afirma.
Segundo a assessoria de
imprensa da Anvisa, a prescrição é uma forma de demonstrar que uma
pessoa passou por uma avaliação profissional e, por isso, está recebendo
o tratamento adequado. Em resposta ao Canal Minas Saúde, o órgão
afirmou: "Qualquer medicamento traz riscos ao organismo. Uma política de
uso racional destes produtos deve ser feita em consonância com uma
política de acesso que permita às pessoas ter o tratamento adequado".
Com foco na adoção de hábitos mais regrados de consumo de remédios, a Anvisa publicou, no dia 11, a Portaria nº 668/2013.
Na oportunidade, foi anunciada a composição de uma Força de Trabalho,
criada para propor medidas para estimular o uso racional dos
medicamentos no país.
O grupo terá 30
participantes, entre representantes da indústria farmacêutica, do
mercado varejista de medicamentos, conselhos profissionais, associações
médicas, sindicatos, universidades, entre outros. A proposta de criar a
Força de Trabalho surgiu no início do ano, para ampliar os cuidados com
relação à exigência da receita médica para obtenção de medicamentos em
farmácias e drogarias.
A ideia de maior
controle para a venda até mesmo dos medicamentos ditos ‘mais simples’ é
vista com desconfiança pelo sociólogo Levindo Costa. "Para alguns
medicamentos, como aspirinas e outros analgésicos, o uso de receitas
tornaria sua compra muito burocrática", afirma. Mesmo reconhecendo a
prática corrente de automedicação no Brasil, o sociólogo argumenta:
"Seria um tanto inusitado marcar uma consulta médica apenas para se
obter uma receita para um remédio que teria como único objetivo ajudar
no tratamento de uma ressaca ou enxaqueca simples", conclui.
Vale lembrar que, no
Brasil e no mundo, a automedicação e a falta de critérios para
dispensação dos remédios nos estabelecimentos são um problema inclusive
para a cadeia de vigilância sobre a produção e utilização de
medicamentos. Por isso mesmo, a Anvisa espera conseguir, com a Força de
Trabalho, mobilizar os representantes da sociedade para formular ações
concretas sobre o tema.
Problemas para o organismo
Outro ponto a ser
observado é que o uso abusivo pode sobrecarregar o fígado, órgão do
corpo humano responsável pela sintetização de inúmeras substâncias.
Muitos remédios que consumimos se valem das funções metabólicas do
fígado, que processa e sintetiza inclusive as toxinas.
Assim, se uma pessoa
abusa dos medicamentos, acaba por expor seu fígado a lesões e até mesmo a
um quadro de hepatite medicamentosa, uma grave infecção no órgão
causada por hipersensibilidade. E há que se refletir: se um órgão tão
importante para as funções vitais do ser humano é prejudicado, o que
dizer dos reflexos para a saúde como um tudo?
Produtos de conveniência
A Assessoria de Imprensa
da Anvisa reforça que o comércio farmacêutico está regido por lei e o
espectro de produtos que podem ser comercializados já foi definido com
base nas características que devem estar presentes em uma farmácia ou
drogaria. “O foco deste estabelecimento é dispensar medicamentos e
serviços farmacêuticos com qualidade, por isso a lei brasileira trata
estes locais de forma diferente do comércio em geral”, aponta o órgão.
Embora antigo, um artigo
disponibilizado na rede, de autoria do diretor-presidente da Anvisa,
Dirceu Raposo de Mello, e do especialista em Políticas Públicas e Gestão
Estratégica da Saúde, Gustavo Henrique Trindade da Silva, põe em
debate, entre outros tópicos, justamente a venda de mercadorias nas
grandes redes de farmácia que não estão associadas a uma vida saudável
ou mesmo à área de saúde (sorvetes, refrigerantes e bijuterias, por
exemplo).
Como informa a
farmacêutica e diretora da Fenafar, Célia Chaves, a Federação Nacional
dos Farmacêuticos tem se empenhado, nos últimos anos, para desenvolver
uma intensa campanha para transformar a farmácia em um estabelecimento
de saúde, e não meramente um estabelecimento comercial. Neste sentido,
“toda prática comercial que seja considerada alheia ao estabelecimento
farmacêutico não contribui para a caracterização que lutamos para
conquistar. E isto não se restringe aos produtos que não contribuam para
uma vida saudável, abrange todo e qualquer produto que não se enquadre
em produtos para saúde", sinaliza.
Por sua vez, a
Assessoria de Imprensa da Anvisa deixa claro que, embora alguns pontos
da norma ainda tenham que ser resolvidos judicialmente, o órgão entende
que, do ponto de vista da saúde, “a legislação brasileira e as
normatizações da Agência já deram estes limites e definições para o
comércio farmacêutico”.
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