domingo, 9 de junho de 2013

Automedicação


Remédios: limites entre o uso racional e o abusivo

O consumo indiscriminado de medicamentos é um problema mundial de saúde pública. Somente no Brasil, são consumidos, diariamente, 90 milhões de comprimidos analgésicos. 

por Guilherme Amorim
O que você faz quando está com uma dor de cabeça ou diante de uma reação alérgica? E ao sentir os efeitos da má digestão ou mesmo ao perceber o corpo manifestar um desconforto muscular? Não seria incomum responder a isso com naturalidade: “Ora, vou à farmácia e compro um analgésico, um antialérgico e antiácido para o estômago”. Exemplos, aparentemente simples, mas que retratam uma prática muito comum no Brasil: o hábito da automedicação.

Hoje, a quantidade de remédios consumidos pela população brasileira está na ordem dos milhões. Para que se tenha uma ideia, são consumidos diariamente no país mais de 90 milhões de comprimidos analgésicos, como a aspirina, por exemplo. Em todo o mundo, são 216 milhões de drágeas desse mesmo medicamento, por dia. Tal exemplo, que foi apresentado pela Revista Ciência Hoje, refere-se apenas a um tipo específico de analgésico, o que revela o quanto o uso de medicamentos é, de fato, abusivo em todo o planeta.

O uso indiscriminado de medicamentos já motivou até mesmo a Junta Internacional de Fiscalização a Entorpecentes da Organização das Nações Unidas (Jife/ONU), a declarar, em 2010, a situação como um problema mundial. Também pudera: o número de viciados em remédios ultrapassa o de dependentes de outras drogas (cocaína, heroína e ecstasy, por exemplo), dados da própria Junta.

Nesse contexto, ficam alguns questionamentos: por que esse hábito é tão frequente? Existem formas de controlar esse consumo desregrado? Até que ponto o acesso facilitado a esses medicamentos contribui para que sejam comprados de forma corriqueira, natural?

Com ou sem receita?
Em 2010, entrou em vigor, no Brasil, uma resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que determinou, por exemplo, a retenção de receita para a compra de antibióticos, visando à redução do uso indiscriminado e desregrado do medicamento.

A medida, que incomodou no início, já é vista pela população, atualmente, como uma forma proteção à saúde pública, uma vez que direcionou melhor o consumo e também conteve a formação das chamadas 'superbactérias', isto é, bactérias patogênicas que se fortalecem após o uso incorreto dos remédios antimicrobianos.

Apesar disso, ainda é fácil o acesso a outros medicamentos, como aqueles utilizados para gripes e resfriados, dores de cabeça e musculares, cólicas, todos tidos como problemas de menor gravidade. O sociólogo Levindo Costa, 35, por exemplo, acredita que a forma como são disponibilizados os remédios fora do balcão nas grandes farmácias contribui para maior consumo. No entanto, não se considera um cliente estimulado pela facilidade. "Meu consumismo não chega a tanto", pondera Costa, que faz uso de remédios para gripe e reações alérgicas.

De acordo com a farmacêutica e diretora da Federação Nacional dos Farmacêuticos (Fenafar), Célia Chaves, a classificação de um medicamento nas categorias de isento da prescrição, sujeito à apresentação de receita e de sujeito à retenção de receita depende da avaliação do risco que este produto pode apresentar quando consumido pela população.

De qualquer forma, lembra Célia, todos os medicamentos, quer sejam tarjados ou não, podem apresentar risco se não forem utilizados da maneira e dose corretas, ou usados em momentos inadequados e por pessoas erradas. "Permitir que o acesso a qualquer tipo de medicamento ocorra de forma não qualificada, ou seja, sem a possibilidade de, no mínimo, orientação do profissional farmacêutico, sempre que necessário, pode contribuir para seu uso de forma irracional", afirma.

Segundo a assessoria de imprensa da Anvisa, a prescrição é uma forma de demonstrar que uma pessoa passou por uma avaliação profissional e, por isso, está recebendo o tratamento adequado. Em resposta ao Canal Minas Saúde, o órgão afirmou: "Qualquer medicamento traz riscos ao organismo. Uma política de uso racional destes produtos deve ser feita em consonância com uma política de acesso que permita às pessoas ter o tratamento adequado".

Com foco na adoção de hábitos mais regrados de consumo de remédios, a Anvisa publicou, no dia 11, a Portaria nº 668/2013. Na oportunidade, foi anunciada a composição de uma Força de Trabalho, criada para propor medidas para estimular o uso racional dos medicamentos no país.

O grupo terá 30 participantes, entre representantes da indústria farmacêutica, do mercado varejista de medicamentos, conselhos profissionais, associações médicas, sindicatos, universidades, entre outros. A proposta de criar a Força de Trabalho surgiu no início do ano, para ampliar os cuidados com relação à exigência da receita médica para obtenção de medicamentos em farmácias e drogarias.

A ideia de maior controle para a venda até mesmo dos medicamentos ditos ‘mais simples’ é vista com desconfiança pelo sociólogo Levindo Costa. "Para alguns medicamentos, como aspirinas e outros analgésicos, o uso de receitas tornaria sua compra muito burocrática", afirma. Mesmo reconhecendo a prática corrente de automedicação no Brasil, o sociólogo argumenta: "Seria um tanto inusitado marcar uma consulta médica apenas para se obter uma receita para um remédio que teria como único objetivo ajudar no tratamento de uma ressaca ou enxaqueca simples", conclui.

Vale lembrar que, no Brasil e no mundo, a automedicação e a falta de critérios para dispensação dos remédios nos estabelecimentos são um problema inclusive para a cadeia de vigilância sobre a produção e utilização de medicamentos. Por isso mesmo, a Anvisa espera conseguir, com a Força de Trabalho, mobilizar os representantes da sociedade para formular ações concretas sobre o tema.

Problemas para o organismo
Outro ponto a ser observado é que o uso abusivo pode sobrecarregar o fígado, órgão do corpo humano responsável pela sintetização de inúmeras substâncias. Muitos remédios que consumimos se valem das funções metabólicas do fígado, que processa e sintetiza inclusive as toxinas.

Assim, se uma pessoa abusa dos medicamentos, acaba por expor seu fígado a lesões e até mesmo a um quadro de hepatite medicamentosa, uma grave infecção no órgão causada por hipersensibilidade. E há que se refletir: se um órgão tão importante para as funções vitais do ser humano é prejudicado, o que dizer dos reflexos para a saúde como um tudo?

Produtos de conveniência
A Assessoria de Imprensa da Anvisa reforça que o comércio farmacêutico está regido por lei e o espectro de produtos que podem ser comercializados já foi definido com base nas características que devem estar presentes em uma farmácia ou drogaria. “O foco deste estabelecimento é dispensar medicamentos e serviços farmacêuticos com qualidade, por isso a lei brasileira trata estes locais de forma diferente do comércio em geral”, aponta o órgão.

Embora antigo, um artigo disponibilizado na rede, de autoria do diretor-presidente da Anvisa, Dirceu Raposo de Mello, e do especialista em Políticas Públicas e Gestão Estratégica da Saúde, Gustavo Henrique Trindade da Silva, põe em debate, entre outros tópicos, justamente a venda de mercadorias nas grandes redes de farmácia que não estão associadas a uma vida saudável ou mesmo à área de saúde (sorvetes, refrigerantes e bijuterias, por exemplo).

Como informa a farmacêutica e diretora da Fenafar, Célia Chaves, a Federação Nacional dos Farmacêuticos tem se empenhado, nos últimos anos, para desenvolver uma intensa campanha para transformar a farmácia em um estabelecimento de saúde, e não meramente um estabelecimento comercial. Neste sentido, “toda prática comercial que seja considerada alheia ao estabelecimento farmacêutico não contribui para a caracterização que lutamos para conquistar. E isto não se restringe aos produtos que não contribuam para uma vida saudável, abrange todo e qualquer produto que não se enquadre em produtos para saúde", sinaliza.

Por sua vez, a Assessoria de Imprensa da Anvisa deixa claro que, embora alguns pontos da norma ainda tenham que ser resolvidos judicialmente, o órgão entende que, do ponto de vista da saúde, “a legislação brasileira e as normatizações da Agência já deram estes limites e definições para o comércio farmacêutico”.


Montagem: Guilherme Amorim / Imagem original: pixabay.com

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