Palestra de Eugênio Vilaça enfoca atenção primária
Publicada em A palestra Redes de atenção à saúde e gestão da clínica, ministrada pelo consultor em saúde pública Eugênio Vilaça Mendes, na aula inaugural do mestrado profissional em Atenção Primária, na sexta-feira (30/3), foi marcada por grande expectativa por parte dos mestrandos. O vice-diretor de Gestão e Desenvolvimento Institucional, Francisco Braga, abriu o evento salientando a contribuição de Vilaça para o “aprendizado intelectual da saúde pública pela sua capacidade de trazer discussões a um plano macro (epidemiologia), meso (organização da rede de atenção à saúde) e micro (gestão clínica em cada unidade de saúde)”.
Eugênio Vilaça iniciou sua palestra traçando um panorama atual da situação da saúde no Brasil. “Ela vem mudando, e hoje é marcada por uma transição demográfica acelerada e uma situação de tripla carga de doenças. Ou seja, uma agenda não superada – de doenças infecciosas, desnutrição e problemas de saúde reprodutiva –, com forte predominância de doenças crônicas e seus fatores de risco, como tabagismo, sobrepeso, inatividade física, uso excessivo de álcool e outras drogas, alimentação inadequada e o crescimento das causas externas”.
A transição demográfica acelerada no Brasil é caracterizada pela redução dos níveis de fecundidade e de mortalidade e a consequente transformação da pirâmide etária da população, que no início dos anos 2000 apresentava uma população jovem em maior número, e que em 2045 apresentará uma sociedade mais idosa, sendo que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística aponta que em 2008 quase 60 milhões de pessoas afirmaram ter pelo menos uma doença crônica.
Essa situação de saúde é incoerente, segundo Eugênio Vilaça, com um sistema de atenção à saúde fragmentado, reativo, episódico e voltado, prioritariamente, para o enfrentamento das condições agudas e das agudizações das condições crônicas. Segundo o especialista, os países ricos tiveram tempo de acabar com doenças infecciosas e têm como meta ocorrência de trauma zero. “Nós temos que dar conta de doenças infecciosas clássicas, de epidemias de doenças crônicas – que ainda não enxergamos –, ao mesmo tempo que convivemos com o fenômeno de causas externas como a violência”, ressaltou.
Outro desafio, para Vilaça, é o subfinanciamento do Sistema Único de Saúde (SUS), que “não será resolvido injetando mais dinheiro no sistema atual, mas num outro modelo de atenção à saúde”, afirmou. O controle do diabetes é um exemplo. Nos Estados Unidos, o gasto per capita anual em saúde é de US$7.164, contra US$721 no Brasil, sendo que apenas 37% dos portadores de diabetes americanos apresentaram níveis glicêmicos controlados, e apenas 27% dos brasileiros portadores da mesma síndrome tipo 2 apresentaram níveis glicêmicos controlados.
"A situação de saúde do século XXI está sendo respondida socialmente por uma sistema de atenção do século XX"
Qual a razão da crise dos sistemas de atenção à saúde no plano macro? No entender do consultor em saúde pública, a situação de saúde do século XXI está sendo respondida socialmente por um sistema de atenção do século XX, quando prevalecia um quadro de doenças infecciosas assentado no modelo de condições agudas – que tem a cura como resultado, tem duração curta, é centrado no cuidado profissional medicocêntrico, entre outras características.
“O SUS deve ser entendido como um processo em construção permanente, que visa, em médio e longo prazos, a uma mudança do paradigma de atenção à saúde”, elucida Eugênio Vilaça. Então, para restabelecer a coerência entre a situação de saúde com transição demográfica acelerada e tripla carga de doenças com predomínio forte de doenças crônicas e um sistema integrado de saúde contínuo e pró-ativo, voltado equilibradamente para a atenção às condições agudas e crônicas, Vilaça propõe a implantação das redes de atenção à saúde (RASs), que são “arranjos organizativos de ações e serviços de saúde integrados por meio de sistemas de apoio técnico, logístico e de gestão”, de acordo com conceito do Ministério da Saúde. Esse modelo virou lei através do decreto 7.508, de 28/6/11, e da portaria 4.279, de 30/12/10.
A diferença entre o sistema fragmentado e as RASs é que o sujeito na Rede é um agente de saúde. As RASs são responsáveis por uma população definida; são organizadas de forma poliárquica (não há hierarquia); por um contínuo de atenção – primária, secundária e terciária –; de forma integral – ações de promoção da saúde e de prevenção, cura, cuidado, reabilitação ou paliação das doenças; coordenadas pela atenção primária à saúde; orientadas para a atenção às condições agudas e crônicas; focadas no enfrentamento sistêmico de condições de saúde ou doenças; organizadas pelas necessidades de saúde da população; e têm incentivos econômicos alinhados aos objetivos sanitários.
O palestrante apresentou um caso de RAS no SUS: o programa Mãe Curitibana, que conta com 104 unidades sanitárias (53 de saúde da família e 51 tradicionais), atenção pré-natal de baixo risco, planejamento familiar, monitoramento da gestante de alto risco, atenção puerperal e atenção à criança. Na atenção secundária, o programa contempla pré-natal de alto risco, ecografia, planejamento familiar, cirurgia de alta frequência, colposcopia, mamografia e biópsia para rastreamento de câncer de mama, ginecologia, atenção ao recém-nascido e à criança de alto risco, eletrocardiografia, eletrocefalografia e atenção em subespecialidades pediátricas. Os resultados são positivos: de 1997 para 2009 a taxa de mortalidade infantil caiu de 16,4 para 8,9%; e a de mortalidade materna caiu de 68,26 (1994) para 29,75% (2009).
"O objetivo final dos sistemas de atenção à saúde é gerar valor para a população e diminuir as iniquidades"
A segunda parte da palestra do consultor tratou da Gestão da Clínica. Segundo Vilaça, o objetivo final dos sistemas de atenção à saúde é gerar valor para a população e diminuir as iniquidades. Esse valor expressa-se na relação entre a qualidade dos resultados econômicos, clínicos e humanísticos e os recursos utilizados no cuidado da saúde, explica Vilaça, e só pode ser obtido através de intervenções de promoção da saúde e de prevenção das condições de saúde, o que exige a implantação das RASs. Para alcançar esse objetivo é necessário o equilíbrio entre a gestão dos recursos (humanos, materiais e financeiros) e a gestão dos fins (clínica).
A Gestão da Clínica tem origem em experiências internacionais: Atenção Gerenciada e Governança Clínica. O conjunto de tecnologias de microgestão da clínica baseia-se em diretrizes clínicas, que são recomendações sistemáticas com o propósito de influenciar decisões profissionais de saúde e das pessoas usuárias do sistema em situações clínicas específicas, com funções educacional, comunicacional, gerencial e legal. São dois tipos de diretrizes: as linhas-guias e os protocolos clínicos. As evidências apontadas pela experiência da Gestão da Clínica indicam que há melhoria da coordenação entre equipes, o que contribui para a redução das internações e das taxas de permanência, aumenta a satisfação dos usuários, diminui o uso de medicamentos e reduz o custo da atenção, entre outras melhorias.
Autor do livro Redes de Atenção à Saúde, Eugênio Vilaça defendeu que “a Rede de Atenção à Saúde surge de uma boa linha guia baseada em evidências e não em opiniões”. Em abril, lançará o livro O cuidado das condições crônicas na Atenção Primária à Saúde.
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