A qualidade da Atenção Básica, parte II
Esta é a segunda parte do artigo “Na opinião dos usuários, a Atenção Básica vai bem. Porém…”, publicado neste blog no último domingo (02/09). Clique aqui para ler a primeira parte do artigo, que faz a análise do resultado da Pesquisa de Avaliação dos Usuários sobre a Atenção Básica feita pela Ouvidoria Geral do SUS (SEGEP/MS).por Hêider Aurélio Pinto, Médico especialista em saúde coletiva, mestrando em saúde coletiva pela UFRGS e Diretor do Departamento de Atenção Básica do Ministério da Saúde.
Segunda Parte
O Acesso na visão de quem usou o SUS
Dentre os cidadãos que utilizaram os serviços de atenção à saúde do SUS, o procedimento mais buscado
foi a consulta médica (79% dos usuários) seguida por medicamentos (53%)
e exames de laboratório e imagem (49%). A busca por consultas
odontológicas representou 18% do total.
A ampla maioria dos usuários (85%) foi atendida ao menos uma vez nos últimos 12 meses nas Unidades Básicas de Saúde (UBS).
Esse número se repete na saúde bucal, ou seja, 85% dos usuários
atendidos por profissionais da saúde bucal, tiveram seu atendimento
realizado nas UBS e só 15% em outros serviços, como os Centros de
Especialidades Odontológicas (CEO), por exemplo.
Menos da metade, representando um total
de 40% dos usuários, foi atendido ao menos uma vez em serviços de
urgência, sendo que metade deles em Prontos Socorros, um quarto em
Unidades 24 horas e outro quarto em Unidades de Pronto Atendimento
(UPA).
Os usuários que afirmaram serem atendidos por uma equipe de saúde da família (esf)
representou 55% do total e 5% das pessoas não soube responder a essa
pergunta. Esse número corresponde quase que exatamente à cobertura
populacional brasileira (54%), na época da pesquisa, o que nos mostra
dois elementos importantes: (1) quem é coberto de fato está usando o
serviço e, (2) as pessoas sabem cada vez mais identificar quando uma UBS
se organiza pela Estratégia de Saúde da Família (ESF). Outras pesquisas
de opinião de amostragem menor, disponíveis no Ministério da Saúde,
confirmam também essa tendência de ampliação do reconhecimento e da
avaliação positiva da ESF.
Disseram ter recebido visitas em sua casa, nos últimos 6 meses,
de algum membro da esf 42% dos usuários. Ainda que se possa comparar
com a cobertura populacional das esf (54%) e dos agentes comunitários de
saúde (64%) e chegar à conclusão de que nem todas as pessoas cobertas
estão sendo visitadas, ainda assim o número é bem expressivo.
Considerando que a amostra é representativa da população brasileira
poderíamos afirmar que mais de 80 milhões de brasileiros, provavelmente,
receberam ao menos uma visita domiciliar nos últimos 6 meses de algum
membro da equipe de saúde da família.
As UBS mostraram que estão bem distribuídas no território e realmente próximas de onde vivem os brasileiros,
pois 87% dos usuários respondeu que demora até 30 minutos para chegar à
UBS que fica mais perto de sua casa. Apenas 4% mora a mais de 1 hora de
distância da Unidade Básica de Saúde mais próxima.
Do ponto de vista da acessibilidade e
das dimensões do território de referência os resultados estão de acordo
com a nova Política Nacional de Atenção Básica[1]
(PNAB), publicada em 2011, que recomenda 3 mil pessoas para cada esf e o
máximo de 12 mil pessoas por UBS orientada pela ESF. Cada uma então,
com até 4 equipes. Para UBS que não são orientadas pela ESF e que estão
em áreas de grande concentração populacional recomenda-se o teto de até
18 mil pessoas.
O objetivo maior dessas recomendações é
garantir o máximo de proximidade e acessibilidade ao usuário, estimular
uma área com um tamanho que não dificulte a intervenção da equipe no
território e favorecer a existência de um bom e colaborativo ambiente de
trabalho na UBS sem que tudo isso represente perdas de escala, como de
fato acontece em UBS pequenas de uma ou duas equipes.
Os dados apresentados confirmam que as
Unidades Básicas de Saúde são, com larga vantagem, os serviços mais
acessíveis e acessados do SUS. A pesquisa nos mostra que as pessoas usam
o serviço, ele está localizado próximo de suas casas e seus
profissionais chegam até a população em seu próprio domicílio.
Mas, o que nos diz a pesquisa sobre a facilidade ou dificuldade encontrada pelos usuários para serem atendidos?
Para responder a isso foi perguntado aos
usuários se, para eles serem atendidos precisaram agendar suas
consultas previamente. A metade dos usuários (51%) respondeu que foi
atendida no mesmo dia sem precisar de agendamento prévio, 19% foi
atendido em até 1 semana após o agendamento, 15% entre 1 semana e 1 mês e
para 13% o tempo de espera da consulta superou o longo tempo de 1 mês.
Uma vez na UBS, 34% dos usuários
disseram que foram atendidos em até 30 minutos, 20% deles foram
atendidos em até 1 hora, outros 20% em até 2 horas, 13% entre 2 e 4
horas e 8% só foram atendidos depois de uma considerável espera de 4
horas. Destacamos que 5% dos usuários não conseguiram atendimento.
Os números da saúde bucal
são muito parecidos com o dos demais atendimentos da UBS, porém, o
número de usuários que não conseguiu ser atendido pelos profissionais da
saúde bucal chega a 18%, ou seja, três vezes e meia maior.
Debatendo os resultados
é importante lembrar, antes de tudo, que existem pouquíssimas pesquisas
que nos permitem comparar os tempos de espera e, nenhuma de âmbito
nacional que tenha tido essa amplitude. Reforçamos a importância dessa
iniciativa, tanto pelo seu ineditismo quanto pelo fato de continuar como
um inquérito periódico e regular que permitirá acompanhar melhorias na
Atenção Básica, a partir da ótica dos usuários.
Estabelecemos com esse inquérito uma
linha de base e um melhor juízo a respeito dos dados virá com o
acompanhamento da evolução dos mesmos e com o aprofundamento através de
outras iniciativas como a avaliação do Programa Nacional de Melhoria do
Acesso e da Qualidade (PMAQ)[2] e da relação de ambos com o desenvolvimento de ações e políticas que buscam impactar no quadro avaliado.
Ao comentar os achados é importante
enfatizar que não se trata de estabelecer parâmetros simples para
diferentes realidades, todas complexas. Podemos afirmar que esperar mais
de 30 dias para marcar uma consulta, independente da necessidade de
saúde em questão, é um tempo muito grande. Também que não é razoável
esperar mais do que 2 horas numa UBS para um atendimento. Porém, se
estamos tratando de um caso agudo e com sofrimento esperar mais que meia
hora numa UBS sem nenhuma intervenção que alivie o usuário já é muito.
Esperar mais de 48 horas para agendar a consulta num caso que envolva
dor, que pode piorar ou que seja transmissível também excede em muito o
desejável. Com isso, afirmamos que os tempos devem ser definidos em
função da necessidade de saúde em questão. Sem olhar para elas só
podemos fazer afirmações genéricas.
Os números que tratam do tempo de espera entre
a marcação da consulta e o atendimento nos chamam a atenção por três
motivos. Temos uma quantidade expressiva de atendimentos no mesmo dia
(50%) que ultrapassa o que se espera de situações que, em função do
risco e da vulnerabilidade do usuário, exigiria atendimento imediato. Há
também uma distribuição nas 4 semanas seguintes, concentrando mais
atendimento nas primeiras semanas e reduzindo progressivamente conforme
se avança o tempo. Tudo isso convivendo com um número de mais de 10% de
usuários que só foi atendido após 1 mês. Os que tratam do tempo de
espera na própria UBS revelam a excelente marca de que 54% dos usuários
foi atendido em até 1 hora e só 21% após 2 horas.
É importante perceber que os dados não
nos fazem acreditar que exista um certo tipo ideal de UBS que
representaria a maioria das unidades do país. Mas, na verdade, são
resultado da experiência dos usuários em UBS que se organizam de
infindáveis e contraditórios modos. Em muitas se distribuem um número
limitado de fichas de atendimento para o dia; em outras tantas se abrem
listas de agendamento para aquele mês (como nos consultórios privados);
existem aquelas que conseguiram avançar com a implantação do
“acolhimento” como modo de organizar o acesso universal com equidade;
enfim, os tipos são variados e infindáveis.
A UBS, com a
responsabilidade de ser o lugar preferencial do primeiro contato do
usuário com o SUS e de ofertar e coordenar a atenção integral às
necessidades de saúde dos usuários, precisa combinar adequadamente:
(a) atenção individual e familiar com ações dirigidas à saúde dos
coletivos de seu território; (b) atenção à demanda espontânea (incluindo
as situações de urgência), com oferta programada a usuários que
precisam de cuidado continuado; (c) atendimento na UBS com ações no
domicílio e em diversos equipamentos sociais da comunidade.
Muitas vezes, a combinação dessas
dimensões é apontada como contraditória, havendo ainda quem defenda a
priorização de uma oferta em detrimento da outra. A tradução desse
conflito no cotidiano das UBS faz com que, em algumas, usuários que
pertençam a algum grupo que conta com oferta programada e prioritária
(como gestantes, crianças até 2 anos, pessoas com doenças crônicas,
etc.) tenham acesso relativamente fácil. Outros que não se “encaixam” em
nenhum “grupo”, mesmo estando em situações de sofrimento e apresentando
um problema agudo, podem encontrar muita dificuldade para ser atendido,
exigindo incursões de madrugada em busca de uma das poucas fichas
disponibilizadas “para o dia”.
De outro lado, sabemos que uma UBS pouco
acessível e que não acolha as pessoas nas situações agudas e de
urgência, justamente na hora que se sentem mais aflitas e desamparadas,
não é legitimada pela população e faz com que muitas pessoas busquem
serviços de pronto atendimento com necessidades de saúde que seriam
melhor acolhidas, cuidadas e acompanhadas nas UBS. É inevitável que uma
UBS que “fecha sua porta” receba pressões de todo o tipo para ampliar o
acesso dos usuários.
Contudo, essa pressão pode exigir de
uma UBS um volume de ações que extrapole a capacidade de oferta frente a
uma demanda comprimida no tempo por diversos motivos que vão desde a
insegurança do usuário (que se traduz num “não deixar pra amanhã, pois,
amanhã não sei se terei oportunidade”) à reprodução mais geral do
consumismo e da instantaneidade da sociedade atual no conjunto das
relações.
Em síntese, podemos dizer que, do ponto de vista do acesso aos serviços, os dados são
claramente positivos pois, a imensa maioria das pessoas está sendo
atendida num tempo razoável. Era de se esperar números muito piores,
principalmente num período em que o noticiário nos inunda com tempos de
espera bem mais alargados praticados na saúde suplementar.
Porém, uma UBS que
funcione como um serviço de pronto atendimento, na lógica de
queixa-conduta de baixa resolubilidade, pode apresentar bons dados nos
parâmetros anteriores, sem cumprir sua missão que é ofertar atenção
integral, com elevado grau de resolubilidade ao conjunto de necessidades
de saúde da população de um dado território.
Para enfrentar isso
gestores das três esferas de governo entenderam que o PMAQ deveria
estimular a implantação de uma série de “padrões de acesso e qualidade”,
sempre debatidos e pactuados para cada situação singular, que
impactassem na organização da UBS e no processo de trabalho das equipes
com efeitos tanto na ampliação do acesso e na redução dos tempos de
espera, quanto no desenvolvimento de um modelo de atenção compatível com
a missão esperada das UBS. Destacamos, a seguir, três dispositivos
estimulados pelo PMAQ para exemplificar o que dissemos.
A implantação do “acolhimento” é
estratégica para que o usuário possa ser escutado o mais rápido
possível, que o serviço se responsabilize com a solução de seu problema e
que haja a decisão de uma intervenção com tempo de desenvolvimento
adequado à gravidade e urgência de sua necessidade e condição de saúde.
Garantindo que todos terão atendimento em tempo oportuno e que quem
precisa mais e pode esperar menos será atendido antes.
Um segundo dispositivo estimulado no
PMAQ é a construção de uma agenda de trabalho compartilhada entre os
profissionais que: seja aberta e garanta a realização e retaguarda ao
acolhimento da demanda espontânea; preveja programação de ações para
usuários que precisem de cuidado continuado; permita a realização das
ações planejadas pela equipe para organizar e qualificar o processo de
trabalho e atuar nos problemas prioritários do território.
Por fim, o PMAQ estimula também a
marcação de consultas por múltiplos meios (presencial, telefone,
virtual) e com horário informado previamente para a chegada e
atendimento do usuário. Com hora marcada, não há motivo nenhum para que
um usuário que agendou previamente espere mais que uma hora na UBS.
Com relação aos dados das pessoas que não conseguiram atendimento,
podemos dizer que eles preocupam bem mais na ações de saúde bucal que
nas demais ações da atenção básica em geral, ainda que tenhamos que
buscar zerar as duas situações.
É inegável o extraordinário avanço nos
últimos 9 anos na oferta de serviços e nos resultados relacionados à
saúde bucal no Brasil, país que têm a maior oferta pública de ações e
serviços de saúde bucal do mundo e um dos poucos a ofertar isso
gratuitamente. Porém, comparado ao conjunto da atenção básica (que
também configura a maior oferta mundial de atenção primária pública), os
dados reforçam tanto as evidências de menor cobertura e de importante
demanda reprimida no atendimento em saúde bucal, quanto o acerto da
mudança estabelecida na nova Política Nacional de Atenção Básica
(PNAB-2011) que passou a recomendar que em todas as equipes de saúde da
família tenham profissionais de saúde bucal.
Concluímos reafirmando
que é necessário combinar os dados levantados nesse primeiro inquérito
com informações que revelem os modos de organização do processo de
trabalho dessas UBS e, como elas buscam dar conta do conjunto de ações
necessárias ao desenvolvimento de sua missão. Por isso, é essencial
apurar as informações colhidas nas diversas avaliações do PMAQ. O estudo
desse inédito conjunto de informações permitirá aprofundar esses dados e
propor novos desenhos tanto para o segundo ciclo do PMAQ quanto para o
segundo inquérito da pesquisa tratada nesse artigo.
Apresentaremos e analisaremos, na
terceira parte desse artigo, os dados da pesquisa relativos à satisfação
dos usuários com os serviços prestados na UBS.
[1] Portaria 2.488 de 21 de outubro de 2011.
[2]
O PMAQ lançado em 2011 prevê quatro fases: na 1º a contratualização de
metas e padrões de acesso e qualidade; na 2º a realização de
auto-avaliação pelas equipes, o monitoramento de indicadores de saúde e
apoio institucional e educação permanente para dar suporte à implantação
de mudanças; na 3º a realização de um ampla avaliação externa; na 4º
nova pactuação de metas e padrões.
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