sexta-feira, 19 de julho de 2013

I Seminário de Saúde Mental

EPSJV promove I Seminário de Saúde Mental
 
Talita Rodrigues
 
“A internação compulsória está prevista na Reforma Psiquiátrica, mas para casos pontuais. De onde se tirou a ideia de que todos que estão na rua são dependentes e têm que ser internados? Antes do crack não tinha ninguém na rua? Vem alguém e diz que o crack é um problema e reduz tudo a isso? E os outros problemas? E o abandono? Internam crianças para tratar do crack, mas quem trata o abandono? Trata o crack e depois? Volta para a rua? Não podemos transformar efeito em causa. Crack não é causa do abandono, é efeito. Esses são elementos essenciais para discutir o uso da droga”.

 Essas questões foram levantadas por Sérgio Alarcon, assessor de Saúde Mental na Área Técnica de Álcool e Outras Drogas da Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil (SMSDC) do Rio de Janeiro, no I Seminário de Saúde Mental da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), realizado no dia 12 de julho. O evento marcou também o encerramento dos cursos de Especialização em Saúde Mental e de Atualização em Atenção Integral ao uso de Álcool e outras Drogas.

Eduardo Vasconcelos, professor da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que também participou do seminário, lembrou que o crack é uma droga barata, de fácil sintetização em laboratório caseiro e difundida em todo o país, o que vem levando ao consumo crescente da droga. “Além disso, causa rápida deterioração psíquica e da saúde, monopoliza a vida do usuário e vicia rapidamente. No núcleo familiar, a situação é dramática, pois os dependentes vendem objetos, sofrem violência, são acorrentados ou abandonados pelos familiares. No caso das crianças, muitas são abandonadas pelos pais usuários do crack, o que causa uma pressão nos abrigos e conselhos tutelares. Hoje temos também um aumento crescente da judicialização, quando a família procura a Justiça solicitando a internação do dependente e os serviços são obrigados a internar o usuário, mesmo considerando que essa não é a melhor solução”, disse o professor.

“Fala-se muito hoje que temos uma epidemia de crack no Brasil. Não sei se existe uma epidemia, mas o que temos evidenciado é que não temos no Brasil serviços públicos para usuários de drogas, nem existe cuidado para a população de rua. Antes de tudo, precisamos avaliar para não darmos soluções verdadeiras para falsos problemas”, disse Alarcon, acrescentando que os serviços especializados são caros, complexos e precisam de trabalhadores preparados. “Além disso, os recursos terapêuticos que nós temos hoje ainda têm baixa eficácia”, completou.

Alarcon lembrou que existe uma política pública para álcool e drogas no Brasil. Segundo ele, pelos menos desde 2001, a Reforma Psiquiátrica vem pensando nisso e, desde 2003, existem diretrizes do Ministério da Saúde, mas os serviços não foram implantados ou foram implantados de forma incompleta.

Além da ausência dos serviços, há um desconhecimento do que é o Sistema Único de Saúde (SUS). “Há um negligenciamento de um dos principais pressupostos do SUS, de que a saúde não é só a ausência de doenças, mas sim, qualidade de vida. Então, não precisamos só de médicos e hospitais. A espinha dorsal do SUS é a qualidade de vida e isso tem um aspecto subjetivo cultural que só pode ser visto no contato entre as pessoas e as equipes de saúde”, defendeu.

Para Alarcon, o problema do uso de crack não vai ser resolvido com a criação de leitos nos hospitais para os usuários do crack, pois a internação deve ser um acessório no tratamento e não uma regra. Ela só deve ser feita em casos específicos e raros como uma intoxicação aguda ou uma abstinência grave (delírios), o que não é comum, ou em função de outras doenças agravadas pelo consumo do crack. “Fora isso, a internação é extemporânea, por isso, os serviços de saúde devem ser preparados para tratar essas pessoas. Existem leitos em hospitais gerais para esses casos, mas os outros casos são clínicos. Por isso, estão previstos serviços como unidades de acolhimento, para pessoas em situação de risco serem acolhidas de maneira mais cuidadosa, mas sem internação. Mas isso não é implantado. Existem também os consultórios de rua, porque os sintomas devem ser tratados em sua intersetorialidade”, explicou.

Eduardo Vasconcelos ressaltou que a atual situação do município do Rio de janeiro é dramática, causada pelo sucateamento dos serviços de saúde nos últimos anos. “O Ministério Público entrou com uma ação pedindo a cassação dos direitos políticos do prefeito e do vice-prefeito do Rio de Janeiro por causa do tipo de internação compulsória que estão fazendo. Quando não se tem um serviço para oferecer, a saúde acaba sendo autoritária”, afirmou o professor, que também critica as comunidades terapêuticas. “Elas não são uma alternativa de política pública e não devem ser financiadas pelo governo. Nós, da Reforma Psiquiátrica, não defendemos as comunidades terapêuticas. Temos conhecimento de casos de violência e de falta de assistência nesses locais, entre outros problemas. As comunidades terapêuticas já viraram um empreendimento comercial”, disse.

Para Eduardo, uma das alternativas para reduzir o consumo do crack é substituir o crack por outras drogas, como vem sendo feito na Europa, e cobrar das autoridades o aumento da rede de serviços. Segundo ele, as experiências internacionais de redução de danos e descriminalização do usuário têm se mostrado bem-sucedidas. “Temos um grande desafio pela frente. É um quadro novo e de difícil solução. Essas pessoas precisam ser reinseridas na sociedade. O desafio de agora é tão grande como no início da Reforma Psiquiátrica. Vamos pelas beiradas, sem aceitar saídas mágicas e autoritárias”, finalizou.

Contexto

Eduardo também falou sobre o contexto social do abuso de álcool e outras drogas no Brasil recente. Ele traçou um panorama da atual situação socioeconômica do país, lembrando a falta de investimento nas questões sociais nos últimos anos, a transição demográfica que o Brasil atravessa e que vem aumentando a população idosa, a participação cada vez maior da mulher no mercado de trabalho, a pouca oferta pública de creches e escolas integrais e a instabilidade dos casamentos, que gera mais violência doméstica, entre outras questões. “A precarização da função simbólica paterna e materna causa a desestrutura familiar e fragiliza a socialização de crianças e adolescentes. O aumento da violência doméstica traz também o risco social”, destacou.

Em relação aos jovens, o que ele chama de “a desarticulação da perspectiva de futuro”, causada por essa situação socioeconômica, acaba sendo uma porta de entrada mais fácil para a droga. “Como estão passando por uma situação difícil, buscam uma recompensa mais imediata e também acabam se identificando com as lideranças do tráfico”, observou Eduardo.

Coral

Ao final da mesa da manhã, foi realizada uma apresentação do Grupo Somos Um, coral formado por pacientes do Instituto de Psiquiatria da UFRJ. O trabalho é uma parceria entre a Escola de Música e o Instituto de Psiquiatria da UFRJ.

Pesquisa

Na parte da tarde, o seminário teve como tema a ‘Saúde Mental na Atenção Básica: o desafio das abordagens psicossociais’. Nina Soalheiro, professora-pesquisadora da EPSJV, apresentou os resultados preliminares da pesquisa ‘Desinstitucionalização e abordagens psicossociais no território: uma investigação das demandas e práticas de cuidado em saúde mental na Estratégia Saúde da Família (ESF) no município do Rio de Janeiro’. A investigação, iniciada em 2010, teve como objetivo identificar e discutir os desafios para a Saúde Mental na Atenção Básica/ESF partindo das convergências entre a reorientação das práticas e territorialização do cuidado.

“Nosso objetivo era mapear e descrever demandas e práticas de cuidado em saúde mental nos territórios estudados, sistematizando elementos que possam identificá-las como abordagens psicossociais, inseridas na perspectiva da desinstitucionalização. Também analisamos a potência do trabalho do Agente Comunitário de Saúde (ACS) com a Saúde Mental, explicou Nina, que coordena a pesquisa, realizada em Manguinhos e no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, com gestores e equipes da ESF, além de estudos de caso de alguns usuários.

 A equipe de pesquisa é formada por profissionais da Fiocruz e de universidades do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais.

Entre os resultados preliminares da pesquisa realizada com os gestores, esses profissionais apontam problemas, como a grande rotatividade de gestores e outros profissionais, o que dificulta a consolidação da ESF; a expansão acelerada da ESF sem a formação adequada dos profissionais para acolhimento das demandas da Saúde Mental; a existência de diversos aglomerados urbanos em condições miseráveis e a diversidade de renda e condições de vida existentes no município do Rio de Janeiro.

Nas conversas com as equipes da ESF, os trabalhadores relataram a falta de tempo para discutir os casos em equipe, o despreparo para lidar com os casos de Saúde Mental, a falta de espaços públicos de lazer e convivência para a comunidade atendida por eles, a depressão dos cuidadores, que abdicam de suas vidas para cuidar dos idosos, e o sofrimento da equipe pela convivência com o cotidiano da violência. “Eles também fazem relatos traumáticos em relação à ocupação policial e instalação das UPPs. Criticam que após a ocupação, o consumo chegou, com a instalação de lojas e a venda de serviços como TV por assinatura, mas o Estado não chegou para garantir direitos como educação, saúde e saneamento”, disse Nina.

Atenção Básica

A experiência em Saúde Mental na Atenção Básica na cidade de Santa Luzia (MG), a na região metropolitana de Belo Horizonte, foi o tema da apresentação de Claudia Penido, do Centro Universitário UMA. “A Atenção Básica é estratégica na Saúde Mental por causa da proximidade com a família.

Estima-se que grande parte das pessoas com transtornos mentais sejam atendidas na Atenção Básica, destacou Claudia.

De acordo com dados da OMS, 90% das pessoas com transtornos mentais não recebem tratamento adequado, o que acaba causando agravos em Saúde Mental na população.

 “E isso impacta nos agravos na Atenção Básica. É possível trabalhar na prevenção dos agravos. Uma das dificuldades é o trabalhador da ESF direcionar o olhar para a assistência integral, apesar do caráter estratégico da Atenção Básica na Saúde Mental”, disse ela.

Para enfrentar o problema, o Ministério da Saúde criou o apoio matricial, um encontro de especialistas em Saúde Mental com generalistas da Atenção Básica, além de incluir ações da Saúde Mental na Atenção Básica e criar os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF). “Com o matriciamento, há um compartilhamento de casos entre os especialistas e a ESF, com um suporte assistencial e técnico-pedagógico”, explicou Claudia, acrescentando: “Um dos desafios a ser enfrentado é a definição de quem coordena o cuidado em saúde. “Há um tensionamento entre as equipes por causa da maneira como os profissionais da Saúde Mental chegam à Atenção Básica. Se o especialista vai apoiar, a primeira coisa que tem que haver é uma pactuação do que precisa ser feito e do que pode ser oferecido. Na Atenção Básica, não tem alguém capaz de coordenar o cuidado em Saúde Mental”.

Outro desafio apontado por ela é melhorar a intermediação entre os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e a Atenção Básica. ‘O apoio matricial serve para racionalizar o acesso ao Caps. Não chega quem não precisa do recurso especializado. Assim, melhora o acesso e não deixa sem acesso quem precisa”, observou Claudia.

A parceria com os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) também é importante. Segundo Claudia, o apoio em Saúde Mental contribui para que o ACS valorize seu trabalho na Saúde Mental. “No início, os ACS não iam aos grupos porque se sentiam desmotivados ao acharem que não tinha resultado, porque a expectativa deles era que o usuário com transtorno mental se curasse e isso não acontecia. Trabalhamos então com os ACS a questão da cronicidade do transtorno mental e explicamos que ele não vai ser curado, vai ser tratado, assim como acontece com hipertensos e diabéticos, por exemplo. Então, eles se deram conta do que significava o trabalho deles e diminuíram o preconceito com o usuário de Saúde Mental”, contou.

Por último, Claudia destacou que um dos maiores desafios da Saúde Mental na Atenção Básica é a integralidade no cuidado do portador de transtorno mental. ‘O paciente é um corpo e precisa de outros cuidados também. Ele pode quebrar uma perna ou ser hipertenso, por exemplo, e a rede tem que atender essas pessoas. Não podemos voltar aos manicômios desde a perna quebrada até o AVC. Isso não é integralidade”, finalizou.

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