segunda-feira, 2 de julho de 2012

Despreparo

Agredidas também pelo despreparo médico

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Pesquisa da USP aponta falhas no atendimento prestado a mulheres vítimas da violência doméstica em hospitais públicos. A dificuldade em identificar o crime e a falta de costume de notificá-lo estão entre os erros cometidos pelos profissionais observados

Não bastasse o sofrimento de ser agredida por alguém íntimo, a mulher vítima da violência doméstica ainda trava uma batalha no atendimento hospitalar contra o preconceito e o descaso. A conclusão é de um estudo realizado na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP) que analisou as percepções de médicos e de enfermeiras da rede pública de saúde sobre esse tipo de crime. A ideia era compreender como os profissionais entendem essas agressões e se as percepções deles interferem no atendimento às pacientes.
De acordo com a autora do estudo, a psicóloga Mariana Hasse, médicos e enfermeiras têm dificuldades em identificar e acolher os casos de violência que chegam às unidades de saúde, mesmo eles sendo tão frequentes e repetitivos. “Cerca de 35% das mulheres que procuram os serviços de saúde já sofreram algum tipo de violência pelo menos uma vez na vida”, diz.
Os profissionais pesquisados associam as agressões contra as mulheres a questões íntimas dos casais e ao uso abusivo de álcool e de drogas. No caso das enfermeiras, o destaque foi para a atuação da mulher no mercado de trabalho. “Isso teria desestruturado as famílias e estimulado a violência. Essa percepção retrata muito a culpa dessas mulheres por duplicarem as jornadas ao irem trabalhar fora”, salienta Hasse. De uma forma geral, segundo a especialista, a postura dos entrevistados sobre a violência doméstica — origem, motivações, tipos e consequências — foi bem parecida.
Comum e em muitos casos distorcida, essa percepção interfere na forma como a vítima é atendida, indica também o estudo. Monique*, 20 anos, foi esfaqueada pelo ex-marido e, ao procurar atendimento hospitalar, sentiu a indiferença dos médicos. “Foi um descaso. O médico perguntou se a faca estava enferrujada e se eu já tinha tomado as vacinas (contra tétano), mas, em nenhum instante, me questionou sobre como aquilo tinha acontecido comigo”, recorda. A mulher, mãe de um filho, lembra que os médicos conversavam banalidades enquanto a tratavam. Depois, a liberaram sem fazer a notificação do crime.
A coordenadora do Núcleo de Estudos e Programas para os Acidentes e Violências do Distrito Federal (Nepav/GDF), Lucy Mary Stroher, explica que a notificação nas situações de violência é uma obrigação prevista em lei (Lei nº 10.778 de 2003), podendo o profissional de saúde ser responsabilizado em caso de omissão. Esse registro indica à Vigilância Epidemiológica e ao Sistema Nacional de Notificação sobre o ocorrido, além de proporcionar à vítima atendimento psicossocial e encaminhamento à delegacia para a busca de proteção.
“Na delegacia, descobri que o hospital não poderia me liberar sem nenhuma segurança”, recorda Monique. O sentimento dela, quando se lembra do episódio, é de desvalorização. “Como eu sei que eles tratam todas as pessoas assim, não levei para o lado pessoal. Mas acho péssimo pagarmos impostos e sermos tratados com tanto descaso”, desabafa.

Sem orientação
Hasse percebeu que, nos casos em que a violência física era evidente, os profissionais tiveram facilidade em identificá-la. Contudo, a dificuldade em orientar as vítimas ainda persistia, prova de que os servidores públicos estudados desconheciam ou ignoravam a rede de proteção existente. “Os enfermeiros tiveram treinamento sobre a notificação compulsória dos casos de suspeita ou de confirmação de violência. Por isso, notificaram mais do que os médicos”, indica a psicóloga. Quando a profissional era mulher, foi perceptível a motivação de caráter pessoal e moral em cuidar das vítimas em situação de violência.
A secretária de Estado da Mulher do Distrito Federal, Olgamir Amancia, acredita que, quando o profissional está preparado a ser sensível às questões femininas, ele percebe uma vítima de violência doméstica sem precisar que ela se anuncie. “A vítima fala de diversas formas. Se o médico ou o enfermeiro estiver preparado, ele vai perceber”, acredita. Para ela, o problema indicado pela pesquisadora paulistana é uma realidade em todo o país. “A falta de capacitação permite que o problema enfrentado por essas vítimas seja banalizado. Quando o profissional deixa de notificar, ele contribui para que aquela violência volte a acontecer”, diz.
Segundo Hasse, a formação oferecida aos profissionais de saúde também deixa a desejar. De forma geral, dificilmente a categoria é formada em uma linha humanista, com condições de entender os processos sociais de adoecimento. Acaba, então, adotando uma lógica causal ao explicar as doenças e uma prática curativista ao tratá-las. “Especificamente falo sobre a precariedade da formação para a questão de gênero e da violência de gênero. Nenhum dos profissionais entrevistados referiu ter estudado o assunto nem na graduação nem nos cursos de pós-graduação”, critica.
A médica sanitarista Karina Morelli, diretora da Secretaria Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres da Presidência da República, acredita que médicos e enfermeiros deveriam ter uma formação ainda na faculdade voltada para o atendimento à violência doméstica. “Por isso as dificuldades. A violência contra a mulher não é uma doença, não está ligada exclusivamente ao corpo e sim a uma questão naturalizada e cultural”, observa.
Hasse destaca ainda a abrangência desses treinamentos. “Se puderem entender esses processos, vão perceber que só um médico ou só um psicólogo, enfim, que nenhum profissional sozinho é suficientemente capaz de cuidar das vítimas da violência doméstica adequadamente. É preciso agregar saberes e fazeres para isso”, opina.
Uma visão simplista dos gêneros recorrente entre os médicos e os enfermeiros entrevistados pela pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP) também aparece como um obstáculo no atendimento hospitalar às vítimas da violência doméstica. Há, de acordo com Mariana Hasse, uma tendência de entender como fixos os papéis tradicionais de homens e mulheres na sociedade. “É como se fossem construções socioculturais, parte de um processo histórico que vem sendo construído e reconstruído diariamente”, observa a psicóloga.
Para a médica Karina Morelli, a adoção de políticas públicas e o fortalecimento da Lei Maria da Penha ajudam a amenizar o patriarcalismo das relações sociais. “Entram aí também as capacitações . As fazemos com nossos profissionais a fim de sensibilizar de forma positiva esse atendimento”, ressalta a diretora da Secretaria Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres da Presidência da República.
De acordo com Hasse, essa concepção naturalista de gênero é reiterada quando não é questionada nem refletida. “Se as pessoas começarem a internalizar que essa ideia de ‘tem coisas que são de meninas e tem coisas que são de meninos’ é algo cultural, podemos começar também a questionar padrões de comportamento, como ocorreu com a violência contra a mulher — há 10 anos, era uma questão privada na qual ‘não se metia a colher’. Hoje, temos a Lei Maria da Penha.”
Karina Morelli ressalta, no entanto, que o enfrentamento às agressões vem aumentando no serviço de atendimento prestado pelo governo federal. Dados consolidados entre 2006 e 2012 indicam que as queixas registradas no Disque 180, aproximadamente 603 mil, mostram que a violência física configura 30% dos casos, seguidos pela psicológica (12,8%), pela moral (5,4%), pela sexual (1%) e pela patrimonial (0,8%).
* Nome fictício
A falta de capacitação permite que o problema enfrentado por essas vítimas seja banalizado. Quando o profissional deixa de notificar, ele contribui para que aquela violência volte a acontecer”
Olgamir Amancia,
secretária de Estado da Mulher do Distrito Federal
Fonte:  Correio Braziliense

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